segunda-feira, 25 de outubro de 2010

VOLTA PRA MIM

HOJE É DOMINGO

O dia acordara cedinho enfarpelado de luz resplandecente, sol claro-escuro numa luz que ofuscava o transluzir da minha conspecção. Os raios do sol trespassavam a minha imaginação depenando a ociosidade que domava a minha vontade quando querendo erguer o meu corpo, o sono pesava sobre mim. Senti rumores tempestuosos sacudindo o timbrar do alarme que vibrava ao meu celular. Desliguei à primeira vista porque não resistia mais a suavidade do tom angélico daquele alarme: um anjo dominical cantarolando aos meus ouvidos surdos. Passou meia hora e a minha vista ainda continuava densa mas devia forçosamente pular da minha cama torneada. Marquei dois passos e estampei o meu olhar pesaroso. Depois de sacudir a doçura nocturna que me cobria pela escova, molhei-me num banho morno e despi toda vaidade para ir acerejado ao encontro do meu pão. Fasciculei-me todo inteiro, sem reservas; aferrolhei a porta do meu aposento e aprumei os meus calçados incolores, típicos do terreno de acção (a terra de Mavalane); empoeirada, arreada e trajada de sujidade atemporal. Antes de galgar ao chapa devia invitar os meus “museus” (companheiros de pastoral) com os quais auguro navegar nas marés insólitas da aventura odisseica da vida celibatária.

Vozes dementes sussurravam-me dirigir o olhar à porta do refeitório, tomar um chá fresco, com doçura dominical. Num bate-papo flexível despachei-me porque os “museus” já me aguardavam para partirmos ao terreno. Todos eles fumegavam adornados a moda de domingo como é próprio de celibatários: endomingam-se para serem apreçados e assarapantarem os olhares femininos. Cinquenta metros da minha casa passa a Avenida Kim Il Sung, fluentemente dinâmica, estrepitosa e afogante. Foi naquele lugar onde, nós, os três “museus” grimpamos um chapa que nos dirigia a Mavalane. O nosso lema era: HOJE É DOMINGO. E todos os que estavam pendurados naquele chapa ficaram avassalados pelo imperioso lema dominical que para tal a obrigação era de nenhum passageiro ficar de pé; deixamos atrás uma paragem e a seguir dela estava uma “deusa” parada aguardando pelo chapa. De repente, bradou o cobrador: “Maguanine, Xikheleni, Componi aifambe mamana” (vamos mamã). Olhei confusamente àquela criatura e meu coração pinchou fora de lugar vibrando violentamente. Como eu estivera sentado, cedi o meu lugar para que ela usufruísse do calor que eu fui amontoando aquando da minha sentada. Acolhi-me ao seu lado derramando lágrimas intoxicadas sem enxergar o cacarejar das minhas palavras. O outro “museu” tossiu sem paciência e atirou o olhar àquela donzela endeusada. Sem perder tempo saudou-a afectuosamente num tom amoroso: “oi, tudo bem? Sinto que estás bem cínica. A propósito, de onde vens?” ao que ela disse: “tudo!? Venho do serviço e vou visitar os meus parentes em Xikheleni”. Retorquiu ele, “E o teu serviço está caminhando bem?” ao que ela respondeu: “Nada de bom porque trabalhar com negro não presta nada. Todo negro não vale nem tão pouco”. Face àquela asserção transpirei interiormente. Fiquei uns tantos minutos meio mudo e aterrorizado. Após um tempo taciturno, com lábios moribundos rasguei os meus nervos e depus-me a falar: oi moça estás consciente do que acabas de aferir? E ela disse categoricamente: “trata-se de uma experiência vivida e contra factos não há argumentos”. Este foi um outro abalo sísmico que estremeceu as minhas entranhas. Todavia, nem por isso deixei-me derrotar porque quando a veemência emocional sobe, a adrenalina psicológica também multiplica os fiascos racionais desenhando frases enigmáticas e, por vezes, antes de melancolia. Então julguei certo inquirir se alguma vez teria ousado tomar uma sopa de cacana pura. E ela como veterana disso, sabe sobejamente quão amargas são as folhas daquele vegetal. Entristeceu-se e, cabisbaixa disse: “Onde pretendes chegar?”. E eu disse assustado: “assim como nem todas as verduras são amargas, também nem todos os negros não prestam”. Com este provérbio similar acendi a euforia da minha “deusa” e senti que o seu semblante confessava uma brasa ardente queimando seu âmago com palavras presas em sua garganta. Dizia palavras silenciosas e reparávamo-nos mutuamente sem respeito como se de esposos se tratasse.

Antes de abarcarmos ao local onde o hábito nos tem aconchegado, ela foi a primeira a descer na paragem posterior à barbearia onde o meu “museu” (Nikula) tem ficado a fazer barbas pois quando avizinha o domingo entre nós é imperativo categórico despir as impurezas semanais (por ser Dies Domini) e vestir a mundanidade indo louvar ao Senhor com ar renovado. Quase a levantar-se para sair disparou ela: - “foi um prazer viajar contigo moço. Devo descer porque alhures neste bairro morram os meus parentes. Posso ter o teu contacto telefónico?” duvidei a singeleza dela e num ar desconfiado respondilhe: não desponho de contacto talvez a referência mais fácil seja a matrícula deste carro: KV O7.07. decifrei-lhe estas letras num tom mudo: “Kant de Voronha nascido no dia sete (07) de Julho (07)”. É divertido moço, tchão. Vemo-nos depois ao teu regresso de Mavalane.

Fiquei sentado no chapa com coração volumoso, uma cara de Jesus crucificado em agonia e meditabundo. Repensei as palavras perdidas no silêncio que não as disse e loucuras sensacionais podia ter revelado gozar. Chiei no meu íntimo: perdi uma “deusa macua, talvez fosse minha avó que me faria companhia neste mar tumultuoso que suporto intacto”. Naquela altura nenhum homem deixaria chamuscar seu perfil com aquela anjinha. É uma estrela incandescente como aquela que conduziu os magos que iam adorar o menino Jesus em Belém que acabara de ser “parido”. Mas depois de olhar a cruz no alto da capela e uma luz vermelha acesa ao tabernáculo onde “vive o Senhor” toda malícia tornou-se cinza e toda perturbação ficou esmagada pela espiritualidade dominical.

Confesso-vos, nunca me deixei domar como aquele dia. Porque devia ser naquele dia somente? E por sinal no Domingo? “A ocasião faz o ladrão” diz um adágio popular e ninguém espaça a esta realidade real. Atravessam-me imagens confusas daquela personagem ignota e vive na minha imaginação invadindo impacientemente o meu inconsciente e não posso apagar: espero voltar a vê-la. Decerto, “os homens não se encontram uma vez” e nesse dia vou preferir afogar-me nela e asfixiar-me na sua beleza extasiando a minha fome sensacional. Na verdade, aquele dia era domingo, dia do Senhor. Só no domingo o homem estraga a obra da criação do supremo criador envolvendo-se em desonras humanas e inumanidades. Quem me dera voltar a ver aquela “deusa” e viver novamente aquele domingo inolvidável.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE



INTRODUÇÃO

O campo de investigação de História de Espiritualidade é muito vasto visto que abrange 20 séculos do cristianismo vividos no Oriente, no Ocidente e em todos os continentes mais ou menos influenciados dos valores e das correntes do cristianismo ao longo dos tempos.

É um campo variado, porque compreende o estudo de pessoas, de homens e de mulheres empenhados na acção de cultivar a sua vida interior para a perfeição. Por outro lado, os comportamentos e as atitudes espirituais podem concretizar-se conforme o estado de vida: há uma espiritualidade de leigo, casado ou não; do religioso, do sacerdote, do bispo, etc. Cada uma delas pode também expressar-se em gestos concretos que significam o modo de relação que o sujeito pretende manter com Deus.

É um campo que compreende movimentos espirituais, doutrinas e comportamentos próprios de uma determinada linha espiritual, como por exemplo: as ordens religiosas, os mosteiros, escolas de espiritualidade.

Assim podemos colocar diferentes etapas de vida espiritual, por exemplo: entre os séculos I – XI a espiritualidade se encontra misturada com outros saberes cristãos, exegese, teologia, pastoral (Existência Incorporada), entre os séculos XII-XIII encontramos já a vivência espiritual dentro dos mosteiros (Teologia Monástica); entre os séculos XIV-XV, aqui já começa a verdadeira separação entre a teologia e a espiritualidade (Devoção Moderna); entre os séculos XVI-XVII, aparecem os primeiros místicos e mestres da espiritualidade que transmitem experiências abundantes e doutrina qualificada (Criadores da Experiência e da Doutrina); entre os séculos XVII-XVIII, aqui já começam a surgir os primeiros tratados e sumas de ascética e mística. Eruditos organizam material espiritual e místico com grandes temas teológicos, embora sejam poucos originais na experiência e no pensamento (Tratadistas e Compiladores). Nos séculos XIX-XX em diante (Configuração Teológica da Espiritualidade), a espiritualidade toma consciência da sua riqueza e gradualmente vai-se definindo, solidificando, tomando o seu próprio objecto, as suas fontes, o seu método, e a variedade de aplicações. Atinge um estatuto, um quadro na inserção académica, um lugar no ensinamento institucional e especialização dentro da teologia: cátedra, manuais, cursos, institutos de espiritualidade.

A História de Espiritualidade tende para uma síntese, ideal este que só se pode realizar em medida incompleta, devido a variedade e a complexidade das experiências espirituais e dificuldade em expor a relação do homem com Deus.



I – A ESPIRITUALIDADE NAS SUAS ORIGENS – SÉCULO I



1. Vida espiritual do Novo Testamento

1.1.A nossa herança (O povo Judeu)



A base essencial da espiritualidade judaica é a santidade: “Sede santos, porque Eu, Iahweh, vosso Deus sou santo” (Lev 19,2). O conceito judaico de espiritualidade e da santidade têm a sua origem na concepção de que a religião faz parte integrante da existência humana.

O fim que o judaísmo se propõe é de elevar o indivíduo e a comunidade ao nível de contínuo aperfeiçoamento ético-religioso. É necessário, por isso, que o indivíduo e a comunidade percebam a presença da divindade em todos os instantes da vida, e não simplesmente no lugar do culto ou no momento da oração. em casa ou fora de casa, no exercício da actividade habitual própria, o judeu é ajudado e estimulado a conseguir plena consciência do divino.

A espiritualidade judaica, entendida como santidade que exprime a dimensão do sagrado, faz parte de todos os momentos da existência quotidiana, isto é, os actos habituais como a alimentação, o trabalho, o casamentos exprimem a vivência interior da experiência religiosa. Daí se pode entender a afirmação da eleição do povo de Israel, chamado a converter-se em “reino de sacerdotes, em povo santo” (Ex 19,6).



Entre os deveres fundamentais do judeu, deveres orientados para criar um clima espiritual particular, está a observância do sábado, que não é simplesmente consagrar o espaço, mas consagrar o tempo, como fonte de serenidade espiritual, para renovar semanalmente a espiritualidade, isto é, o seu ser santo em Deus.

As festividades judaicas visam celebrar o sentido do sagrado na história. A Páscoa é a festividade dedicada ao acontecimento histórico da 1ª liberdade conseguida no Egipto pela intervenção divina. O Pentecostes destina-se a recordar a aliança do Sinai e a festa das Tendas celebra a providência dispensada por Deus ao povo pelo deserto durante 40 anos. De tudo isto, ressalta o facto de que o judaísmo é a religião da história, religião do tempo, de tal modo que as celebrações festivas nunca estão privadas da sua evocação histórico-temporal.

A bênção e a oração ocupam um lugar de relevo na espiritualidade do povo judeu como constante apelo dirigido ao crente para que descubra em todas as coisas a presença de quem é o Autor de tudo.

Os mestres da tradição judaica atribuíram importância substancial ao estudo assíduo do património espiritual do judaísmo, que definiram com o termo TORAH (ensinamento, lei), isto é, revelação divina aprofundada pelos interpretes qualificados do pensamento judaico. O estudo da Torah equivale a observância de todos os deveres judaicos.



1.2. As correntes espirituais do mundo judaico



a) Os fariseus – Grupo religioso dos judeus. O termo “fariseu” tem o significado de “separado” (de tudo aquilo que é “impuro”; em senso da sua rigorosa observância da Lei). A origem do movimento é pouco claro: muitos vêm nos fariseus como sucessores dos Asidei (1Mc 2,42) . Eles existiam desde os anos 150 a. C. Os fariseus se distinguem da casta sacerdotal dos Saduceus pois não eram sacerdotes. Em força do seu conhecimento da Lei eles possuíam grande autoridade sobre o povo inculto. As suas preocupações eram religiosas e não políticas. Diferentes dos Saduceus, os fariseus sustentavam a ressurreição dos mortos, vida depois da morte e a existência dos anjos.



b) Os Saduceus – Seita judaica do tempo de Jesus, com uma característica política, extremamente conservadores, sacerdotes de alta categoria descendentes de famílias ricas mais importantes. Aparecem nos anos 150 a. C. dentro dos ambientes sacerdotais em que se tinham organizado em defesa do seu poder frente aos fariseus. Eles reconheciam apenas a lei escrita (Pentateuco), não as interpretações que foram feitos a partir das tradições orais. Mesmo os escritos dos profetas não eram considerados normativas. Negavam a ressurreição corporal, a continuação da vida depois da morte e a existência dos anjos. A sua maneira de pensar e de viver era aberta ao mundo, orientado para o helenismo. Depois da queda de Jerusalém no ano 70 d. C., a seita dos Saduceus desapareceu. O judaísmo seguinte é dominado pelos Fariseus.



c) Os Essênios – Seita judaica que provêm, talvez, do desenvolvimento dos Asidei. São escrupulosos na observância da Lei (muitas prescrições no que diz respeito a pureza, com frequentes abluções caracterizada pela prática de grande rigor ascético), vivem na pobreza e ficavam sem se casar na comunidade de clausura. Os essênios casados viviam fora do convento, mas estavam unidos com um pacto. Alguns consideram que foram eles que residiam em Qumrãn .



d) Os Zelotas e Sícaros – Seita dos judeus fanáticos que queriam libertar o povo da colonização romana e que se consideravam, em qualquer modo, como zeladores da honra de Deus (1Mc 2,54ss). Nos anos 66-70 d. C., os zelotas atingiram uma posição política dominante e levaram o povo a uma guerra sem precedentes contra Roma, que terminou com a destruição de Jerusalém pelo Tito Flavio.



e) Os Baptistas – Tem sobrenome de João, que é considerado como o último profeta do A. T. Não é seguro que João tenha tido um contacto com Qumrãn. Os discípulos de João tinham uma forma especial de oração (cfr. Lc 11,1), e uma regra de jejum (cfr. Mc 2,18-22). O seu influxo foi tanto difuso até que Paulo na Ásia Menor encontra os seus discípulos que tinham recebido só o baptismo de João, por isso não conheciam ainda o Espíritos Santo.



f) Os Helenistas – Indica a civilização do oriente nos séculos III-I a. C. conquistados pelo Império de Alexandre Magno e dos seus sucessores. Conjunto de costumes e das ideias da Grécia; a cultura que resultou da fusão da cultura grega com os povos conquistados por Alexandre Magno. Tinha um culto dionisiaco , religiosidade mistérica, o culto do soberano. O cristianismo foi acolhido entre os judeus da língua grega (Setenta ), pois não refuta cada atitude de exclusivismo religioso (cfr. At 11,20). A unidade cultural linguistica operada pelo helenismo foi de grande ajuda na primeira missão cristã. Todos os escritos do N. T. foram redigidos na língua grega.



1.3. Jesus de Nazaré

A experiência espiritual e religiosa de Jesus se coloca, de modo particular, na sua relação com Deus. Logo as suas primeiras palavras aos 12 anos já indicam o itinerário profundo da sua vida espiritual. “Porquê me percuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,49).

Jesus quebra assim o passado, em que a espiritualidade se baseava nas leis e passa para uma nova espiritualidade centrada no Pai.

Na sua oração Jesus chama a Deus de Pai com o termo muito familiar: “Abba, papá” (Mc 14,36). Apresenta deste modo a imagem do símbolo religioso paternal (cfr. Mt 11,25-26).

No conhecimento recíproco entre Jesus e o Pai, encontramos a grande revelação operada por Deus, mais desenvolvido no 4º Evangelho: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9); “Tudo me foi dado por meu Pai; ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho queira revelar” (Mt 11,27).

A imagem paternal de Deus deve levar o discípulo a viver em plena confiança n’Ele, pois os pedidos e as súplicas do Filho são sempre ouvidas por Deus (cfr. Mt 7,9-11; Lc 11,11-13).



1.4. A espiritualidade dos Evangelhos

a) Sinópticos

Os Evangelhos sinópticos são expressão de uma profunda experiência cristã, isto é, de uma experiência de Cristo na fé e no espírito. Esta experiência inclui dois horizontes: a experiência histórica de Jesus, Deus encarnado (Homem) e depois, do Senhor ressuscitado. A 1ª é a experiência originária e a 2ª é a experiência cristã na comunidade eclesial pós-pascal. Há uma continuidade entre os dois horizontes de experiências, que passa sobre a parte da tradição viva dos Apóstolos e dos “ministros da Palavra” (cfr. Lc1,2). Cristo Senhor é sempre vivente no cristão e na comunidade eclesial.



Em cada um dos evangelhos sinópticos é descrita uma particular experiência de Cristo e da comunidade em que o evangelista escrevia. Assim, cada evangelista tem o seu marco principal. Por exemplo, Marcos acentua o caminho de Jesus e o seguimento dos discípulos (cfr. Mc 8,34; 10,32; 14,28; 16,7); Mateus, na sua espiritualidade, acentua o caminho da justiça ou o Reino de Deus (cfr. Mt 5,20), tomando a imagem do Filho de Deus obediente ao Pai, do mesmo modo, quem quiser ser perfeito, seja obediente a Jesus Mestre, podo em prática o que Ele ensinou (cfr. Mt 5-7); e Lucas toma Jesus como modelo do homem novo criado no Espírito. O dom do Espírito Santo, que é o dom de Jesus, abra caminho a fé e a missão (cfr. Lc 24,49). Lucas mostra esta vida nova no Espírito nos eventos misericordiosos de Jesus.



b) Evangelho de S. João

S. João, por excelência, é o evangelista da vida espiritual. O seu ensino é praticamente espiritual; por isso podemos dizer que João, com a sua comunidade, conheceu um desenvolvimento e maturidade espiritual marcada pelas formulas cristológicas mais profundas: “Logos” (1,1), “Paráclito” (14,16), “Filho Unigénito” (1,14), “Enviado do Pai” (3,17), etc.



1.5. A espiritualidade Paulina

Não podemos esgotar o ensino espiritual de S. Paulo, escritor e mais activo entre os Apóstolos. De origem e formação judaica, instruído também na cultura helenística, Paulo reúne em si dois mundos da sua época. Chamado directamente ao apostolado por Cristo ressuscitado, é enviado a evangelizar (1Cor 1,17), em particular aos pagãos (cfr. At 18,6).

Israelita convicto, mas que vive de Cristo e por Cristo, Paulo assenta a sua espiritualidade mais em termos apostólicos e eclesiais do que em elementos pessoais (cfr. 1Tes 2,4). A sua vida e a sua experiência reúnem tanto a personalidade de judeu como do cristão.

“Pregar”, “Anunciar” Cristo é a própria vida de Paulo (cfr. 1Cor 9,16-18). Em poucas palavras, podemos afirmar que a vida espiritual de Paulo está assentada em Jesus Cristo que deve ser anunciado e proclamado. É uma espiritualidade pastoral.

Nesta espiritualidade pastoral se deve colocar a “vida em Cristo”, que é a experiência vivida do Cristo proclamado (cfr. 1Cor 1,9). E o Cristo proclamado provém da vida de comunhão com Ele, que se deve manifestar continuamente em gestos e acções concretas (cfr. 1Cor 16,1-3).

Por fim, o aspecto pastoral da espiritualidade de Paulo é apresentado como fruto de amor, “o caminho por excelência” da vida do cristão (cfr. 1Cor 12,31). O apóstolo é pastor e pai nas comunidades, mais do que mestre. O zelo pastoral deve ser obra do amor que parte de Cristo, o Bom Pastor, Cabeça da Igreja, na entrega total a Deus e ao Evangelho.



1.6.A tradição Apostólica

Os apóstolos, bem como, os primeiros cristãos aspiravam alcançar a perfeição máxima, “sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Santificar-se equivaleria a deixar tudo para seguir a Jesus proclamado pelos apóstolos (cfr. At 3,17-20).

Os textos dos At 2,42-47 e 4,32-35, resumem toda a espiritualidade da 1ª Comunidade cristã sob liderança dos Apóstolos.

Nos At 2,42: “Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna, a fracção do pão e as orações”, temos a síntese de toda espiritualidade na época apostólica, marcada, em particular, por seguintes elementos:



a) Fé e conversão – A nova comunidade cristã emergente tinha como um apelo particular a escutar a Boa Nova proclamada pelos apóstolos que provocavam uma atitude de resposta (cfr. At 2,37-41). A conversão consistia na crença de Jesus Cristo, o crucificado (fé), e na libertação dos próprios pecados, tomando o novo estilo de vida (cfr. At 4,34) (conversão).

b) Cristocentrismo – Todo o ensino dos apóstolos gira em volta de Cristo ressuscitado (cfr. At 4,33). O kerigma dos apóstolos se centrava somente em Jesus Cristo ressuscitado, que é a única fonte de salvação.



c) Comunhão fraterna – No novo estilo de vida a marca principal que os distinguia dos outros era a caridade (cfr. At 4,34).

d) Celebração Eucarística – Já desde os primeiros momentos da Igreja, a comunidade cristã começou a celebrar a Eucaristia, quer dizer, a Eucaristia fazia parte integrante da vida espiritual dos cristãos (cfr. 2,42).

e) Vivência dos Sacramentos – Neste primeiro momento da Igreja, os sacramentos emergentes eram: o Baptismo (At 2,41); Eucaristia (At 2,42), Ordem (At 6,6) e Confirmação (At 8,17).



II – IDADE DOS PADRES APOSTÓLICOS E PÓS-APOSTÓLICOS

SÉCULOS II-III



1. As gerações no tempo dos apóstolos

Os cristãos do fim do I e princípio do II séculos não conheceram directamente a Jesus, senão em comunidades, nas sinagogas, onde escutavam o testemunho dos discípulos dos apóstolos e a Palavra transmitido por eles.

Os cristãos dos II e III séculos desenvolveram novas formas de vida espiritual perante a realidade do momento, por um lado marcada de perseguições, como, por exemplo, nos relata o livro dos Actos, “martírio” (cfr. At 7,55-60), e da entrega total na vida, “virgindade”, nos tempos de paz.



1.1. Espiritualidade do martírio

Com as perseguições o cristianismo começa a difundir-se no império Romano, o martírio torna-se como testemunha de fé defendida e da entrega da própria vida a Cristo, sinal de total comunhão com Cristo na casa do Pai.

A causa histórica dos mártires é a imposição dos tribunais romanos exigindo a mudança da profissão de fé dos cristãos: de “Cristo é o Senhor” para “César é o Senhor”. Mas como toda a repreensão violenta provoca tensão, assim confessar a própria fé significava entrega total da vida em favor de Cristo, imitando-o na sua entrega total no alto da cruz, condição este para estar com Ele na vida eterna.

O mártir dá testemunho de Cristo morto e ressuscitado e do seu Evangelho. O martírio é a afirmação absoluta de que o único e mais importante é Cristo.

Este “testemunho” sanguinário (martyrion) ante os poderes imperiais, são testemunhas (actas dos mártires – cfr. At 6,8-8,3), ou são “tratados” sobre o martírio (Inácio de Antioquia, Cipriano, Orígines, Tertuliano).



a) Valores cristológicos do martírio

O mártir dá testemunho de Cristo e o seu Evangelho.

“O mártir, escreve Sto Agostinho, vive com a verdade e morre para a verdade”.

Viver de Cristo para a vida por Cristo.

O martírio é a afirmação absoluta de que o único verdadeiramente importante é Cristo. O supremo acto de fé n’Ele, não querendo ter outros deuses ou valores alternativos: só Deus basta.

Sabemos que os tribunais romanos que julgavam a causa dos cristãos queriam provocar a apostasia (maldizer Cristo) aceitando o Imperador como deus. Trocar a confissão de fé: Cristo é o Senhor, por César é o senhor.

A Teologia sistemática e litúrgica deduzirá o valor da morte de um cristão, valor vicário, como a morte de Jesus, porém sempre unido a Ele. O triunfo dos mártires sobre os imperadores romanos é o triunfo de Cristo, do seu dom-graça, do seu Espírito. O relato martial (Acta dos Mártires) se converte assim em um tratado De gratia Christi. O mártir é, segundo os relatos primitivos, um duplicado de Cristo.



i) “Heróis” e mártires

O mártir cristão não é um simples heroi, exemplar humano dotado de fortaleza para assumir o seu destino trágico. Freud disse que detrás do “herói” pode se esconder o narcismo de que quem busca a glória, porém o ideal martirial não é a exaltação do eu, senão a doação do eu.



O “herói cristão” não busca a própria glória, senão o triunfo de Cristo nele.



ii) Martírio e Eucaristia

A experiência martirial tem múltiplas conexões com a Eucaristia. A fortaleza do mártir nasce as vezes, segundo constatam as fontes, da recepção do sacramento, levado clandestinamente aos cárceres.

O corpo do mártir é, por outro lado, carne do sacrifício, como a do próprio Cristo na cruz e renovada na celebração eucarística. Neste contexto são exemplares as Cártas do mártir Sto. Inácio de Antioquia. Seu martírio é uma liturgia, um sacramento.

Assim responde Cipriano ao papa Cornélio, que queria readmitir os “lapsos” (os que negaram a fé) imediatamente, antes de fazer a confissão pública, para que não se vejam privados da fortaleza da comunhão: “Temos de conceder a comunhão… aos vivos, para não se deixarem inertes e descobertos, ao que os animamos e exortamos ao combate, na qual serão fortificados com a protecção do sangue e corpo de Cristo; a Eucaristia é o que cumpre esse objectivo e pode ser uma defesa para os que o recebem”.

Esta linguagem escolhido pelo protagonista significa e exemplifica essa conexão entre o martírio e crucificação sacramental redentora. A morte transfigura a carne do mártir, como palavras de consagração realizam o sacrifíco de Cristo de modo incruento. O mártir é como uma eucaristia. Daí procede também o valor redentor.

Alguns textos de Inácio são mais significativos: “trigo de Deus, é para os dentes de feras a ser moído, a fim de ser apresentado como pão limpo de Cristo”. “Suplico a Cristo por mim, para que, por esses instrumentos, possa ser sacrifício para Deus”.



iii) Martírio e baptismo



A assimilação do martírio no baptismo (baptismo do sangue e do fogo) nasce nestes séculos com uma clara referência cristológica. Morrer por Cristo é um acto heróico de amor a Ele, por isso, segundo as fontes desta época: Tertuliano, Origines, S. Cipriano, o martírio confere uma graça superior ao baptismo, não só, mas o supera. O catecúmeno é perdoado os pecados como é no baptismo, se é já baptizado, volta a ser perdoado como se fosse o “segundo baptismo”.



Valores eclesiais

O mártir pertence por direito a chamada “Igreja confessante ou professante”. Porém ao mesmo tempo a Igreja predicante ou Kerigmática. Se no passado passou pelo valor apologético do martírio.

O argumento que inviabiliza por si mesmo enquanto seu significado é polivalente, há quem fale da verdade “subjectiva” do mártir, não da verdade “objectiva”. Todas as ideologias, as grandes personalidades, as grandes causas, tem havido também seguidores idealistas, fanáticos, dispostos a dar vida por elas, por exemplo, seitas religiosas, sistemas políticos, causas de libertação, etc.

Os que se “confessam” de modo sangrento o martírio de um cristão tem um valor escatológico da vida humana, que chega ao seu destino com a morte. São “bem aventurados os perseguidos por causa da justiça” e os mártires, porque relativizam a sua vida e os bens deste mundo, e absolutizam a Cristo e o seu Reino ( o único real, objectivo, que interessa).

O cristianismo, ante a morte, vive em tensão de espera e esperança. O martírio é um sinal do novo Reino de Deus. É o triunfo do espírito de Deus sobre a matéria. Resulta voz profética contra as ideologias opressoras proclamando a dignidade do homem e a liberdade da sua consciência e a irracionalidade do fanatismo.



c) Mártires em tempo de paz

O martírio como confissão de fé, é inerente a existência da Igreja que, é “confessante”, docente, magistral. É um exercício de ascese exigido aos crentes em caso limite.

Uma Igreja que, em hipótese de caso limite, não gera mártires, indicaria que Deus está ausente e que se tenha esgotado o seu índole carismático e profético. Significaria a morte de sua instituição, que apenas manteve as suas estruturas hierárquicas e de poder.



Se o cristianismo moderno perde o valor do martírio seu cristianismo se desnaturalizou, perdeu a sua identidade, relevância e credibilidade. Seria um cristianismo liquidado. Também perderia a Igreja a sua identidade que proclama os mártires como modelos de heroísmo “humano” que se realiza pela acção salvífica de Cristo.

O mártir é um “lugar teológico” para a Igreja, lugar epifático de Deus, em que tenha triunfado a graça salvadora. Por sua assimilação a Cristo reveste de uma graça intercessora e corredentora. Por isso podem ser celebrados liturgicamente como comediadores ante Cristo mediador. Sabe-se que, historicamente, os primeiros “santos” do calendário litúrgico foram todos mártires. Também os primeiros altares, as primeiras Igrejas, foram construídos sobre os sepulcros dos mártires. Exemplaridade e capacidade intercessora, são os motivos que moveram a fé da comunidade para recordá-los em seus dies natalis, dia do martírio.



1.2. Espiritualidade da virgindade

A virgindade, como “constante” da história da espiritualidade, tem uma versão “histórica” e uma reiletura também no nosso tempo.

Quanto a sua importância histórica como “vivência” espiritual se apresenta com variação em crescimento. Em tempo de perseguições a mais importante estado de vida eram os mártires, depois dos Apóstolos.

Em tempo de paz (século IV) o martírio é um fenómeno muito raro e a virgindade se institucionalizava e crescia qualitativamente e quantitativamente suplantando o próprio martírio. O fenómeno social massivo predomina sobre o significado teológico.

A virgindade não é novidade absoluta do cristianismo. Com a antiguidade se praticava por motivos religiosos e também filosóficos, como nos testemunham as fontes cristãs e pagãs. Sua praxis foi utilizada nestes séculos contra os escritores pagãos como uma prova da dignidade e pureza da nova religião cristã.





a. Valores cristológicos



i) Uma pequena reflexão bíblica

Jesus nasceu de uma mãe virgem. Com Maria se inicia os últimos tempos (cfr. Lc 1,26-38). Jesus é virgem. N’Ele o Reino de Deus se faz próximo (cfr. Mc 1,15). Ele encarna todas as bem-aventuranças (Mt 5,3-12). O seu relacionamento de Unigénito com o Pai celeste faz com que nele ocorra a vida em ambulância (cfr. Jo 1,4) e, através da sua palavra, vem participada a cada crente (cfr. Jo 5,17ss). A sua plenitude de caridade para o Pai e os irmãos é o segredo da livre oferta de si para a salvação de todos (cfr. Jo 15,9-17). Os discípulos são convidados a seguí-lo de perto nesta vida de absoluta dedicação para o Reino dos Céus (cfr. Mc 10,28-30; Lc 18,28-30). O matrimónio, nas palavras de Jesus, deixará o lugar ao estado “angélico” dos ressuscitados (cfr. Mt 22,30-32).

O celibato voluntário para o Reino é um carisma que o chamado pode livremente acolher e realizar com a graça de Cristo (cfr. Mt 19,11-12).

Paulo elabora a mensagem da virgindade cristã no contexto escatológico na 1ª carta aos Coríntios (7,29-31). O matrimónio indissolúvel e o celibato vêm propostos ao cristão, na vigilância e na oração (v. 5). O apóstolo é também celibatário (vv. 7-8) e, gostaria que os seus irmãos aspirassem a tal carisma. Quem escolhe livremente tal estado de vida deve tender a perfeição da caridade na união com Senhor com o coração indiviso (vv. 32-35). Mas o mesmo Paulo põe em relevo contra as tendências heréticas que proibiam o casamento por causa da versão d carne (1Tm 4,3); aconselha o matrimónio as viúvas jovens que desejam o marido (1Cor 7,9; 1Tm 5,14).

Na primeira comunidade cristã dos Actos dos Apóstolos, os apóstolos recordam as quatro virgens profetizas, filhas de Filipe, um dos Sete (21,9).

Na liturgia do Apocalipse o Cordeiro pascal era acompanhado, em qualquer lugar que for, pelas virgens “não manchados com senhoras” (14,4).

A virgem para Cristo torna-se um sinal da comunidade eclesial na 2ª carta aos Coríntios (11,2).

Porque que muitos cristãos desta época vivem a virgindade? Quais os motivos profundos que inclinam aos cristãos a escolher este “caminho”?

Os textos do N.T. (Mt 19,3-12; 1Cor 7) aparece como uma opção livre a vida celibatária ou psíquica, isto é, como uma eleição-vocação do Pai que vive como um dom. Fundamentando-se na pregação de Cristo e Paulo, o cristão sabe que existe razões que podem exigir a renuncia ao matrimónio. Não é um desprezo ao matrimónio (sinal de união de Cristo com a sua Igreja), mas que se elege a virgindade-celibato como sinal dos bens definitivos. Paulo propõe como válidos os dois caminhos: o matrimónio e o celibato para o Reino, porém tem suas preferências: o celibato.

Os escritores destes séculos exaltam não só no aspecto físico-biológico da virgindade, que poderia aparecer carregado do sentido mágico ancestral, mas explicitam a motivação última: a consagração a divindade, a Cristo, não por ódio ao mundo.

Assim temos os seguintes testemunhos: “Não os aclamamos por serem virgens, mas por serem virgens consagradas a Deus com piedosa continência” (Sto. Agostinho); “Alguns, por amor a uma mais alta pureza e para dar mais limpidamente culto a divindade, se abstiveram aos prazeres da carne permitidos pela lei” (Origines: +200); “Todo aquele que leva a vida casto segundo Deus, irmão ou irmã, esse é assíduo no culto do Senhor” (Pseudo-Clemente, século III).



II) Virgindade, matrimónio místico



Os autores destes séculos, numa nascente sistematização teológica, explicam a vivência da virgindade como uma entrega amorosa a Cristo, tomando matrimónio simbólico bíblico: desposório-matrimonial de Iahweh com o seu povo Israel. Desposório de Cristo com a sua Igreja, imagem do N.T., se liga ao desponsório místico de Cristo com as almas, especialmente com as virgens.

A formula nasce com Tertuliano, nos finais do II século: o asceta, homem ou mulher, “está casado com Cristo”. “Tu estas casado com Cristo”, disse em particular a uma virgem. Seguiram-se depois as mais variadas fórmulas: Vosso Senhor e Cabeça é Cristo, com quem compartilhais vossa sorte e condição” (S. Cipriano). No século IV na alguma frase definia: “As mulheres consagradas com a virtude da virgindade são chamados na Igreja católica esposas de Cristo”.

Pela força do simbolismo, a virgem se lhe exigirá que socialmente apareça como autêntica desposada. Por isso deverá cobrir-se com o véu . Será adultera quando comete um pecado de castidade e por isso castigada duríssimamente pelas autoridades eclesiásticas. Se trata de uma verdadeira infidelidade a Cristo-Esposo.





III) Virgindade, sacramento e sacrifício

A carne não manchada pelo exercício do acto sexual adquire um significado sacro, sacramental, carne do sacrifício agradável a Deus, uma “oblação perfeita” (Orígines). A virgindade mantém incorrupta a carne, como a assume o Verbo no seio de Maria, e servirá, como a de Cristo, para o sacrifício redentor. Há uma aproximação da vida virginal ao cálice de Cristo: “O Senhor, sendo homem, conservou sua carne incorrupta em perpétua virgindade, também nós, se queremos assemelharmo-nos a nosso Cristo Deus, procuremos antes de tudo honrar a virgindade” (Metódio de Olimpo, III século). Com este elo de ligação se estava colocando a ideia de que a virgindade-vida celibatária era, como estado de vida, “maior” que o matrimónio.

Daí se passa a outra metáfora: “a vida da virgindade é uma “vida angélica” (Novaciano, nascido 250); “Uma vida divina e celeste” (Pseudo-Clemente).

IV) Eucaristia como alimento das virgens.

A virgindade, exercício ascético supra-humano, vivido como um dom , se apoia na comunhão sacramental:

“Ora bem, se todo este desejo (ser virgem), vence o corpo, vence aos prazeres da carne, vence o mundo com o espírito de Deus… vence Satanás por meio de Jesus Cristo, que te há-de robustecer pela audição das suas palavras e pela divina Eucaristia” (Pseudo-Clemente, III século).



b. Valores eclesiais



i) Virgindade-celibato

O significado eclesial da virgindade-celibato está contida germinalmente nos tratados dos primeiros séculos, porém na dedução teológica. Naqueles séculos não existia a preocupação de justificar todas as consequências do dom carismático como serviço eclesial integral, com as suas derivações sociológicas.

Ressalta-se mais a dimensão trascendentalista e o significado escatológico dessa experiência: a consagração a Cristo. Daí que resulta o valor cristológico da virgindade, que continua sendo válido aos nossos dias, e se justifica que todavia o celibato-virgindade, tenha também um sentido para a cultura moderna.

Existe uma explicita afirmação nos textos da fecundidade eclesial da virgindade e daí se pode partir para ulteriores explicações. As virgens eram modelos de vida da entrega a causa cristã, da consagração total a Cristo e ao seu Evangelho.

Daí o prestígio do elogio dos pastores da Igreja neste género de vida. Escrevia S. Cipriano: “Me dirijo as virgens, a porção mais ilustre do rebanho de Cristo. Por elas se elogia a Igreja, nelas floresce esplendidamente a admirável fecundidade da madre Igreja e, a par que se aumenta o número das virgens, cresce a dimensão da madre”.



ii) Virgindade e martírio

O valor da grandeza se evidencia pela comparação com o martírio, que se irá se desenvolver a partir do princípio do século IV. Testemunha excepcional é o bispo Metódio de Olimpo, que escreve o seguinte: “Na vanguarda do santo exército dos ressuscitados irão as virgens que guardaram fielmente e com verdade sua pureza consagrada a Cristo, para receber o guardião dos vencedores e serem coroados com diademas de flores incorruptível”.

Metódio Olimpo, equiparando virgindade e martírio, coloca a virgindade como máximo valor eclesial, assim o afirma: “Porém certamente, em primeiro ordem e primeiro corro que introduzirá o descanso e a luz perpétua dos novos céus, como em real tálamo, será o decorosissimo coro das virgens. Porque havendo tolerado, não um martírio breve de dores físicos, durante certos instantes, senão durante toda a vida, com pesados sofrimentos, sem vacilar um ponto é a tocha verdadeiramente olímpica de castidade, resistindo aos cruéis embates de paixões, de temor, de dores e de outros males de humana malícia, com razão receberá os primeiros prémios , sentando-se aos tronos mais dignos de eternas promessas”.



iii) Virgindade e serviço

A teologia espiritual, que hoje ensaia as antigas vivências cristãs, deduz valores eclesiais do exercício da virgindade-celibato. Retém a antiga teologia do caracter eminentemente carismático (don) da virgindade, é uma chamada, uma vocação divina. Dons dados, não directamente aos interessados, senão aos demais (pessoas, comunidades, Igreja). o célibe consagra a Cristo a sua vida, não só a sua sexualidade, porque Cristo o pede e exige. O faz livremente para estar totalmente disponível para o serviço do Reino.

Um virgindade sem diaconia seria um árvore sem frutos, porém uma diaconia sem virgindade é como o fruto de uma árvore sem podar.

A Teologia Espiritual se baseia profundamente na teologia tradicional, que uma emocionada apologia da virgindade (esposas de Cristo, vida evangélica, vida consagrada, etc.), sobre-valorizando a castidade como uma virtude cristã, e, por consequência, infra-valorizando o matrimónio-sacramento como estado de vida, como uma chamada, uma vocação divina.

Ambos estados, virgindade e matrimónio, se entendem cada um por si mesmo, como vocações particulares.

As críticas contra o celibato e a virgindade não são de hoje. Podem significar uma revolta contra a tradição, uma reivindicação dos direitos de não célibes. Porém, também, é sintomático que surjam outras vozes contra o mesmo matrimónio (amor livre, divorcio, matrimónios civis, etc.).



c) A consagração litúrgica das virgens

Até o fim do II século Inácio de Antioquia, Policarpo, Justino, o Pastor de Erma exortavam aos homens e as mulheres a viverem a própria vocação das virgens na Igreja.

Desde o III século, com Tertuliano, Cipriano, Clemente Alexandrino, Origine, Metódio e o pseudo-Clemente usavam os termos específicos como: “sponsae Christi”, “Christo dicatae”, “se Deo vivere”, “Christo nubere”.

Os pastores das almas dão conselhos as virgens que vivem em família para conservarem fielmente os seus “propósitos” de virgindade.

No IV século se organizam, paralelamente ao mosteiros masculinos, algumas comunidades femininas de virgens, que aparecem como uma categoria eclesial, ao lado das viúvas e das diaconisas.

Se determina, pouco a pouco, uma cerimónia litúrgica de consagração, a idade mínima, um período de prova, os dias mais indicados para a celebração .

Os concílios de Elvira (300-306: can. 13) e de Ancira (314: can. 19) prevêem penas canónicas para as virgens infiéis.

O papa Siricio distingue entre “as virgens já veladas para Cristo, que fizeram a promessa pública de integridade diante das testemunhas, tendo recebido do bispo o véu benzido com a sua própria oração” e a “menina que ainda não recebeu o véu, mas fez a promessa de se manter virgem” . Assim, o papa Inoscêncio I esclarece a diferença entre eles “que se esposaram espiritualmente a Cristo e tiveram o mérito de receber o véu do bispo” e aqueles “que só prometeram de observar o voto de virgindade sem terem recebido o sacro véu” .

S. Jerónimo reserva a cerimónia da consagração das virgens ao bispo. Em certa idade, S. Ambrosio pedia que fossem adolescentes, porque era “aquela idade de fé e de pudor” (ex. Sta Maria Goretti). Correntes mais rígidas chegavam a idade mínima aos 25, ou 40 anos na segunda metade do IV século . Os dias mais indicados para a consagração das virgens eram o Natal, a Epifania, a Páscoa, as festas dos santos Pedro e Paulo. As antigas orações litúrgicas foram ditados pelos sacramentários Leonino, Gelasiano e Gregoriano.

Preciosas testemunhas se encontram nas obras de S. Ambrosio e do papa Siricio . A consagração decorria dentro da celebração eucarística, na presença das outras virgens. O bispo recordava o significado e os empenhos derivantes da pública consagração. O bispo recitava a oração da bênção e a concedia o véu .

Outras particularidades podemos encontrar na obra De lapsu virginis consecratae di Niceta de Remesiana e ainda de S. Ambrosio . O bispo depois de alocução, colocava a veste nupcial com o véu, tomado directamente do altar. Depois a virgem pedia a bênção, com quem era consagrada.

De repente se passou do ascetismo pré-monastico, caracterizada pela vida em família e na comunidade cristã, para os mosteiros separados do mundo, como protesto contra o renascimento que se deu depois da paz de Constantinopla.

S. Agostinho dirigirá espiritualmente a comunidade monástica feminina da Igreja africana, dando uma regra de vida, que será amplamente utilizado na história do monaquismo medieval . S. Cesário de Arles, no IV século, oferece uma especial Regra para as virgens e da mesma maneira o fará S. Leandro de Sivilha para a sua irmã Florentina e as outras religiosas



d) O celibato dos clérigos

No ocidente, a partir do século IV, se difunde o celibato ou ao menos a continência para os bispos, os presbíteros e os diáconos.

A carta 63 de S. Ambrosio nos informa sobre o cenóbio (convento) episcopal de S. Eusébio de Vercelli (+ cerca 371). Ele quis que os seus cenobitas fossem “separados da relação com as mulheres” , se cuidassem reciprocamente, como anjos, a virtude dos irmãos.

O sermão Quamquam dilectissimi de S. Ambrosio descrevia a vida dos clérigos como uma comunidade de virtuosos, que, reciprocamente, reparavam na humildade, na continência, na castidade, na bondade e na misericórdia de todos .

Segundo Ambrosio foi S. Eusébio o primeiro a instituir um cenóbio clerical, unindo a ascese monástica ao ministério dos clérigos . O mónaco, acostumado a rejeitar as atractivas da carne e do mundo, dava garantia e perseverança na virtude. O clérigo, investido da missão de guiar os irmãos, podia estender a comunidade eclesial a vitória sobre inimigos da Redenção .

Analogamente, S. Martinho, depois de ter recebido a ordenação presbiteral, se retirou em contemplação a Ligugé; mesmo depois da nomeação a bispo de Tours, se retirou em contemplação na comunidade contemplativa de Marmoutier .

Sob o episcopado de S. Agostinho, de facto, “se começou a ordenar para a Igreja de Ipona (Alexandria), aqueles que serviam a Deus no mosteiro. E difundindo-se de dia a dia a verdade da doutrina católica ilustrada do propósito da continência e da profunda pobreza dos santos servos de Deus, se começou e tornou-se uso de mandato com grande desejo e de receber bispos e clérigos do mosteiro fundado e ampliado daquele memorável homem” .

O cenóbio clerical se tornava o modelo de vida da 1ª comunidade apostólica de Jerusalém . Porém conservando uma altíssima estima para a vida monástica, os cenobitas, em virtude da caridade, exerciam os mistérios pastorais a favor da Igreja .

No oriente, S. Atanásio nos informa sobre o uso no IV século, de escolher os bispos entre os mónacos .

Começavam, no entanto, as prescrições canónicas dos ministros sagrados. O concílio de Elvira (can. 33) proibia aos bispos, diáconos e clérigos, no exercício do seu ministério, de se casarem.

Complexo e vários eram as motivações deste desenvolvimento disciplinar, que da continência chegaram, ao longo dos séculos, ao celibato eclesiástico. Provavelmente influenciou ainda a norma veterotestamentaria da abstinência cultural.

A ascese para uma maior disponibilidade a serviço de Deus e dos irmãos, a oração e a contemplação, a caridade pastoral; estes são os motivos mais recorrentes na literatura patrística.

Tocará aos grandes Padres, como S. Agostinho, fazer emergir as profundas motivações teológicas positivas. A continência é em função da unidade e da caridade. “Se é necessário fechar o vaso da carne é para dilatar o espaço da caridade” . A continência é o instrumento para vencer a “carne do pecado” da qual nos fala S. Paulo (cfr. Rm 8,3), restaurando a unidade interior do homem que saiu das mãos do Criador . Tal continência, que é dom do Redentor, infunde no homem renovado uma espiritual fecundidade .

Sob o exemplo de Cristo, de Maria e dos Apóstolos, os Padres vêem no celibato eclesiástico um carisma do Espírito, para servir melhor a Igreja e anunciar profeticamente o Reino dos Céus .



2. Os Padres Apostólicos

O Senhor não deixou nada escrito. Pregou a Boa Nova e disse aos apóstolos de pregar em todo o mundo, até os confins da terra. Eles executaram o mandato. Todavia alguns deles colocaram por escrito uma parte da doutrina que pregaram, assim surgem os Evangelhos, os Actos dos Apóstolos e muitas Cartas que foram a base da espiritualidade neotestamentária.

Com a pregação dos apóstolos e os discípulos destes, perante as perseguições até III século, fez com que a espiritualidade das origens, baseada na pregação e no testemunho dos seguidores de Cristo, se expandisse em todo Império Romano, de modo particular na Palestina, na Ásia Menor, na Palestina helénica, no Egipto e na Itália. Incluindo também no Ocidente da Europa: Gália, África do Norte e Espanha.

Toda a literatura da Igreja Primitiva era de “inspiração bíblica”. Este período da Literatura Primitiva é comum se denominar a “Idade dos Padres Apostólicos”, porque, directa ou indirectamente, os actores destes escritos derivam do vivo ensinamento dos Apóstolos.

Nem toda a literatura antiga cristã foram aprovados pelo Magistério da Igreja, encontramos muitas obras deste período ignoradas (apócrifos ) que revelavam também a espiritualidade deste tempo.

Todo este primeiro período se estende até a metade do II século denominamos de período dos Padres Apostólicos. Isto é, os Primeiros Padres da Igreja, aqueles que viveram na época depois dos Apóstolos, ou pouco depois deles.

A espiritualidade desta época era baseada nestes escritos destes Padres, a destacar: Carta do Pseudo-Barnabé; Pastor de Hermas e Didaquê. Os autores deste período, podemos destacar: S. Clemente Romano, S. Inácio de Antioquia e S. Policarpo de Esmira.



2.1. Escritos dos Padre Apostólicos



a) Carta do Pseudo-Barnabé



Se trata de um apócrifo do N. T. A atribuição a Barnabé é devido a tradução dos manuscritos e de alguns antigos escritores eclesiásticos . Se deve datar depois dos anos 70, porque a obra menciona explicitamente a destruição do Templo, duma arte; por outro lado, não é possível ultrapassar as primeiras décadas do II século, porque o autor parece ignorar os grandes problemas que atingiram a Igreja depois do período do gnosticismo.



O escrito se divide em duas partes distintas:



i. A 1ª de caracter didático-polémico (1-17) – em que prolonga a Carta aos Hebreus na sua interpretação da única aliança operada por Jesus Cristo. Para ele, o único conhecimento necessário é a exposição do verdadeiro valor e do verdadeiro significado da revelação do A. T. Nega, assim, a interpretação puramente literal da Sagrada Escritura.



ii. A 2ª, a mais breve, é de caracter prático (18-21) – é orientada para um caminho moral, e é fundamentada na doutrina dos dois caminhos, oferecida a escolha e a decisão do homem: àquela da luz e àquela das trevas. É um tema que nós encontraremos também na Didaquê e doutrina dos apóstolos.



b) “Pastor” de Ermas

Em grego, o título toma simplesmente o 1º termo: o Pastor. Do autor Erma, que era escravo instruído cristão, proveniente de Arcádia, e veio a Roma com a sua senhora (Rhode), e que depois foi posto em liberdade. Dado ao comércio, conseguiu comprar um peque campo junto a estrada que conduzia a Cuma. Casou-se e constituiu a sua família, mas não foi bem sucedido, pois foi denunciado pelos filhos que era um cristão e foi morto. Temos a alusão destes factos nos escritos de S. Clemente, bispo de Roma, (Simil., II, 4,3). O seu escrito se coloca ao fim do I século, pois faz menção a pobreza enquanto se dirigia a Cuma.

A obra se apresenta em 3 secções: 5 visões (visiones), 12 preceitos (mandata) e 10 parábolas ou semelhanças (similitudines). Visto, porém, a obra na sua totalidade, o escrito aparece como distinto em duas partes: a 1ª, compreende as primeiras visões (I-IV); e a 2ª, se estende da 5ª visão até ao termo da Obra. Porém se discute entre os estudiosos, que seja o autor a dividir desta maneira, ou o compositor posterior.



i. Visiones (5 visões)

Nas primeiras 4 visões se sucedem, uma após outra com 4 aparições. Na 1ª uma anciã matrona (Rhode), o convida ao arrependimento; na 2ª, vem-lhe concedido o livro a transcrever, na qual é anunciada uma perseguição contra a Igreja; na 3ª, a matrona aparece rejuvenescida, e ao lado dele, se vê uma torre em fase de construção, com pedras boas e más, símbolo da Igreja, na qual convivem juntos santos e pecadores; na 4ª, aparece um monstro em que projecta infligir uma perseguição, já próxima. A 5ª visão seria o elo de ligação para a 2ª parte da Obra, que mostra o Pastor a figura do anjo da penitência que ordena a Erma de pôr por escrito tudo o que vai escutar e ver.



ii. Mandata

Os 12 preceitos contêm a enumeração das virtudes a praticar (fé e temor de Deus, caridade, amor a verdade, continência e paciência); defeitos e vícios a evitarem (cólera e tristeza, falsos profetas, cativos desejos, etc).

iii. Similitudines (10 parábolas ou semelhanças)

Tende a dar conselhos de perfeição a vida: os cristãos devem considerar-se como peregrinos na terra e ajudar os necessitados. Mas também toma em consideração, sugerindo a impossibilidade, aqui na terra, de distinguir os justos e os pecadores. Na conclusão se aconselha a penitência.

O “Pastor” de Ermas, muito cedo foi conhecido e difuso, foi um escrito de grande valor entre os séculos II a V, sobretudo como texto de edificação espiritual, quase se tratava de uma verdadeira e própria revelação. Mas em seguida, especialmente no Ocidente, foi esquecido.

Um dos aspectos mais singulares é a doutrina da penitência: mesmo depois do baptismo é aberta para todos o perdão e para todos os pecadores também ainda, outra vez, se existe um verdadeiro arrependimento e um sincero e decisivo vontade de emendar-se.

Mostra-se que, a partir do “Pastor” de Ermas, a Igreja admite o sacramento da Confissão, mesmo aos baptizados que cometiam pecados graves depois do baptismo e que necessitavam novamente de se incorporar no seio da Igreja.



c) Didachè

É um escrito anónimo, redigido no período definido pós-apostólico. Comumente é chamado de Didachè (doutrina, ensinamento), par indicar a ‘doutrina do Senhor as pessoas por meio dos doze Apóstolos’. O único manuscrito do texto foi descoberto no ano 1873 por Teófelo Bryennios, metropolita de Nicomedia, e foi dado a conhecer em 1883.

A breve Obra se articula em 3 distintas secções, e se conclui com um reduzido epílogo.



i. 1ª secção (capp. I-VI)

Diz respeito a moral, particularmente marcada pela ‘teoria das duas vias’. O autor declara que, desde o fim até o início, “existem duas vias, uma da vida e outra da morte; grande é a diferença entre as duas vias!” (1,1). A via da vida é esta: “amarás, antes de mais nada o teu Criador, e depois ao teu próximo como a ti mesmo. Aquilo que desejas que não te façam a ti, também tu não podes fazer aos outros” (1,2). Segue depois uma série de preceitos positivos e negativos. O autor passa depois a descrever e a condenar a via oposta: “a via da morte, em vez, é esta: esta é cativa e pleno de maldições: homicídios, adultérios, cativos desejos”, etc (capp. V-VI)



ii. 2ª secção (ccpp. VII-X)

Trata da liturgia sacramental, espécie do baptismo e da Eucaristia.



iii. 3ª secção (capp. XI-XV)

Sugere como comportar-se com os apóstolos, com os profetas e com os doutores.

A conclusão da Obra (cap. XVI), muito concisa e de carácter escatológico, trata da 2ª vinda do Senhor, que está próximo e iminente. Os inimigos do bem farão tudo para levar muitos a ruína, “mas os perseverantes na sua fé serão salvos” (XVI, 5).

Nesta obra imerge a espiritualidade popular da época, marcada: pela obrigação de rezar três vezes o Pai Nosso por dia; nos transmitiu a mais antiga II Oração Eucarística até agora conhecida; exigia, também, dos simples fiéis a purificação da alma com confissão dos pecados antes da Eucaristia: “Na assembleia farás a confissão dos teus pecados e não te coloques a orar com a cativa consciência” (4,14). Se fala também dos bispos, dos apóstolos, dos profetas e dos doutores dignos de honra e benefícios da sua subsistência.

A atribuição da data da Obra é incerta entre os estudiosos. Se pensa entre 140-150 d. C., visto que insiste nas “duas vias” e na pregação do ministros itinerantes, em particular, no Egipto e na Síria Ocidental.



2.2. Os autores proeminentes dos séculos I-III



a) S. Clemente Romano (+101 – Memória: 23 de Novembro)

Bispo de Roma, depois de Pedro, Lino e Anacleto, de 92 a 101

É o autor da Epístola aos Coríntios, endereçada, em nome da comunidade cristã de Roma, à de Coríntios. Conhecendo as dificuldades por causa das disputas e divisões internas, a Igreja de Roma insiste, a fim de que a paz retorne a Comunidade, como o apóstolo Paulo tinha feito acerca de 40 anos antes (1-3). Por isso Clemente escolhe o A. T. numerosos exemplos da fidelidade obediente, humilde, respeitoso aos seus chefes e amigos da paz, e os apresenta como modelos a imitar (6-36).

Depois desta primeira parte, Clemente trata das disposições hierárquicas que devem reger cada Igreja na base instituicional de origem divina e funções bem determinadas pelo mesmo Cristo, o qual escolhe, Ele, os apóstolos, e esses, por sua vez, designam os seus sucessores e os seus continuadores. As tais declarações seguem a exortação de submissão e obediência (37-61).

A conclusão contem uma oração adequada a circunstância e também expressão da oração litúrgica própria da Igreja Romana, inspirada na vida e na visão de fé e do bem a toda Igreja.

Por esta razão, a Epístola de S. Clemente foi considerada imediatamente um documento de capital importância e se tornou objecto, por longo tempo, da pública leitura na igreja logo depois dos livros de N. T., isto é, não só em Coríntio, mas também nas outras igrejas.

A Carta aos Coríntios, escrita em grego, mas num estilo muito Romano, é um documento particularmente importante para conhecer a teologia, a liturgia e, portanto, a espiritualidade do fim do I século, podemos fazer referência uma parte desta:

“Irmãos, como são preciosos e admiráveis os dons de Deus! A vida na imortalidade, o esplendor na justiça, a verdade na liberdade, a fé na confiança, a continência na santidade; tudo isto está ao alcance da nossa inteligência. Que será então o que está preparado para aqueles que o esperam? Só o Criador e Pai dos séculos, o Santíssimo, só Ele conhece o seu número e a sua beleza. Lutemos, portanto, com denotado esforço para sermos contados no número dos que esperam n’Ele, a fim de sermos participantes dos dons prometidos. Como alcançar isto, irmãos? Podemos alcança-lo, se o nosso pensamento estiver arraigado em Deus pela fé, se procurarmos com inteligência o que Lhe é agradável e aceite, se praticarmos o que estiver de acordo com a nossa vontade santa e seguirmos o caminho da verdade, afastando de nós toda a injustiça e perversidade, toda a avareza e rivalidade, toda a malícia e engano. O caminho, irmãos, em que encontramos a nossa salvação é Jesus Cristo, sumo sacerdote das nossas oblações, advogado e protector da nossa fragilidade. Por Ele fixamos o nosso altar nas alturas do Céu; por Ele contemplamos, como num espelho, a face imaculada e soberana de Deus; por Ele se abrem os olhos do nosso coração; por Ele se abre para a luz da nossa inteligência obscurecida; por Ele, o Senhor quis dar-nos a saborear o conhecimento imortal (Carta aos Coríntios 35,1-5; 37,1.4-5).





b) S. Inácio da Antioquia (+ 110 – Memória: 17 de Outubro)



Inácio, cristão de origem siriaca, tornou-se bispo de Antioquia, por volta do ano 70. O seu martírio se coloca por volta do ano 110. Infelizmente não se conhece nada da sua vida e do seu episcopado antes da viagem como prisioneiro para Roma, que é lançado as feras no Coliseu de Roma. No discurso da viagem, feita por mar e outra por terra .

Inácio exprime, nas suas cartas , o amor apaixonado a Cristo, o seu senso profundo da Igreja e uma sede ardente do martírio. A sua cristologia é centrada sobre a imitação a Cristo e a sua eclesiologia, insiste sobre a unidade da Igreja. Éis uma parte da sua carta:

“Escrevo a todas Igrejas e asseguro a todas elas que estou disposto a morrer de bom agrado por Deus, se vós não o impedirdes. Peço-vos que não manifesteis por mim benevolência inoportuna. Deixai-me ser pasto das feras, para me transformar em pão limpo de Cristo. Rezai por mim a Cristo, para que, por meio desses instrumentos, eu seja sacrifício para Deus. Para nada me serviram os prazeres do mundo ou os reinos deste século. Procuro Aquele que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Estou prestes a nascer. Tende piedade de mim, irmãos. Não me impeçais de viver, não queirais que eu morra. Não me entregueis ao mundo, a mim que desejo ser de Deus, nem penseis seduzir-me com coisas terrenas. Deixai-me ser imitador da paixão do meu Deus. Se alguém o possuir compreenderá o que quero e terá compaixão de mim, para conhecer a ânsia que me atormenta… Quero ser o pão de Deus, que é a Carne de Jesus Cristo, nascido na linhagem de David, e por bebida quero o seu Sangue que é a caridade incorruptível …” (Carta aos Romanos 4,1-6).





c) S. Policarpo de Esmira (+ 155 – Memória: 23 de Fevereiro)



Discípulo de S. João e bispo de Esmira. Grande adversário dos gnósticos. Policarpo escreveu numerosas cartas, apenas nos chegou a Carta aos Filipenses. Na sua doutrina, ele, como, Inácio, condenou o docetismo , em particular Marcione. Talvez aludia próprio ele, quando escrevia: “quem nega a ressurreição e o juízo é o primogénito de Satanás” (7,1). Estendia a sua condenação também aos que negavam que Jesus Cristo fosse humano. Como Clemente e Inácio, ele indica a paixão de Cristo como o único fim da nossa salvação: “Ele suportou todo o sofrimento por nós, para que pudéssemos viver só para Ele” (8,1). Assim como para Inácio, a Igreja era única, com um carácter universal. Assim ele usa, pela primeira vez, o termo “católica” para designar a Igreja.

Policarpo morre mártir na idade dos 80-90 anos, queimado no fogo. A notícia do seu martírio suscitou muita comoção entre os cristãos, e imediatamente a Igreja de Filomelio (Grande Frigia) pediu a Igreja de Esmira uma directa redacção daquela morte heróica. Eles respondem logo o legítimo desejo, e enviou o reconto detalhado a todas as Igrejas da região :

Policarpo é levado para o anfiteatro de Esmira e julgado diante de uma multidão que, aos gritos, pedem a sua morte. O julgamento é breve. Policarpo recusa negar Cristo, afirmando: “Eu o sirvo já há 90 anos e Ele nunca me fez mal. Porquê eu deveria negá-lo?” Assim, Policarpo enfrenta o martírio, devorado pelas chamas da fogueira feita pelos próprios espectadores que invadem o arena. Eis a descrição:

“Quando ficou pronta a fogueira, Policarpo desfez-se de todas as vestes, desapertou o cinto e quis-se descalçar sozinho: antes nunca o fazia, porque todos os fiéis se precipitavam a ajudá-lo, a ver qual o tocava primeiro; na verdade, mesmo antes do martírio, ele era tratado com grande respeito por causa da santidade da sua vida. Logo o rodearam com todos os materiais preparados para a fogueira. Quando o quiseram pregar ao poste, ele disse: ‘Deixem-me assim; Aquele que concedeu a graça de morrer no fogo, também me concederá que permaneça imóvel no meio dele, mesmo sem a caução dos vossos cravos’. Então não o pregaram, mas limitaram-se a amara-lo. Com as mãos atrás das costas e amarado, era como um carneiro escolhido de entre um grande rebanho para o sacrifício, um holocausto agradável preparado para Deus. Levantou os olhos aos céus e disse: ‘Senhor Deus Omnipotente, Pai do vosso amado e bendito Filho Jesus Cristo, por meio do qual Vos conhecemos, Deus dos Anjos das Potestades, de toda a criação e de todos os justos que vivem na vossa presença, eu Vos bendigo porque Vos dignastes, neste dia e nesta hora, incluir no número dos vossos mártires, fazer-me tomar no cálice do vosso Ungido e, pelo Espírito Santo, alcançar a ressurreição da vida eterna, na incorruptibilidade da alma e do corpo; no seio dos vossos mártires, Vos peço que eu seja hoje recebido na Vossa presença como sacrifício abundante e agradável, tal como Vós o tínheis preparado, e mo deste a conhecer, e agora o realizais, ó Deus verdadeiro e sem falsidade. Amen’ Depois de ter dito ‘Amen’ e terminado a prece, os verdugos acenderam o fogo. Levantou-se uma grande labadeira; e então vimos o milagre, aqueles a quem foi concedido contemplá-lo, porque somos enviados para anunciar as coisas que aconteceram, o fogo tomou a forma de uma abóbada , como a vela de um navio levado pelo vento, e rodeou o corpo do mártir; e este estava posto ao meio, não como carne que é queimada, mas como um pão que coze, ou como ouro e prata incandescente na fornalha. E sentíamos um odor de tal suavidade que parecia que estava queimando incenso ou outro perfume precioso…” (Carta aos Filipenses 12,1-15,2).



A Carta com a qual os cristãos de Esmira transmitem o relato da sua morte alimentará de várias gerações de cristãos na Ásia Menor.

Com a Carta de Policarpo aos Filipenses podemos considerar conclusa aquela forma de literatura espiritual primitiva cristã, expressa no estilo epistolar e assinalada nas gerações de Igreja em Igreja.



A ESPIRITUALIDADE NA IDADE DA PATRÍSTICA

(SÉCULOS IV-VII)



Temos que ter em conta o aspecto temporal da época, isto é, os vários acontecimentos que se deram nestes períodos dos séculos referidos.

É de notar que as crises do Império Romano ao fim do III século, a época do Édito de Milão em 313, que dá a liberdade a Igreja por Constantino (306-337), a invasão dos bárbaros (375), a queda do Império Romano do Ocidente (476), a conquista dos Árabes no norte da Europa (634), tudo isso influenciou a vida espiritual.

Perante essa tamanha confusão e crises que se vivia na época, por causa da falta de uma orientação clara religiosa, surgem vários movimentos (mosteiros e vida no deserto) com teologias diferentes em modo a defender a fé que era ameaçada. Assim temos algumas correntes heréticas que influenciaram de modo substancial a espiritualidade da época. Por outro lado encontramos grandes autores espirituais (Padres da Igreja) que defendem e ilustram a sua fé.



1. As correntes heréticas e suas influências na espiritualidade

As correntes espirituais heréticas que influenciaram a espiritualidade da época temos apenas a destacar algumas que foram mais fortes, tais como: gnostecismo, manequeísmo, encratismo, mesalianos e montanismo. Em seguida veremos as consequências destas no campo espiritual.



1.1. A gnosis

A gnosis colocou em perigo a fé e a religião cristã envolvendo-a num mar de sincretismo religioso.

Um mundo tão complexo de pensamento, de ritos, não cabe a sua exposição numa história de espiritualidade. Apenas queremos colocar a par este fenómeno que influenciou grandemente a espiritualidade cristã, de modo particular, católica. Deixando o seu aprofundamento pessoal através da pesquisa e interesse individual.



a) Origens históricas

O gnosticismo nasce de muitos afluentes extra-cristãos, mais que uma heresia cristã é uma acumulação sintética de elementos religiosos que entrou em contacto com cristianismo em que se iniciava a sua expansão.



No III século o gnosticismo tinha muitas ramificações:



1. Dualismo – o contraste entre a luz e a sombra, entre o bem e o mal, procedente do Irão.



2. Conspecções astrológicas – nascidas em ambientes babilónicos e exportados ao helenismo em tempo de Alexandre Magno (IV séc. A.C.), que atribuíam aos astros poderes mágicos sobre o mundo e sobre os homens .



3. Ideias herméticas do alto Egipto – donde se encontrou na década 40 D.C., uma biblioteca gnóstica numa região chamado Nag Hammadi.



4. Ideias platónicas – sobre a alma encarcerada na matéria.



5. Revelação bíblica – (A.T. e N.T. e literatura apócrifa).



O gnosticismo preexistente tentou possui, assimilar o cristianismo porque os seus mestres viram que a Bíblia oferecia novas soluções e apoiava seus ritos e crenças.

Seus adeptos pensaram que podiam utilizar a ideologia, os ritos, as estruturas das comunidades cristãs para o proselitismo e a difusão.

Por outro lado, os intelectuais cristãos do II e III séculos viram a possibilidade de utilizar parte do gnosticismo, já helenizado, para explicar a essência cristã. Por isso podemos falar do gnosticismo cristão (Clemente, Orígines, etc.).

Neste mundo confuso de sistemas, de ideologias imergentes, crescem as hipóteses e as opiniões mais contratantes: o gnosticismo é uma religião que nada tem haver com o cristianismo, por isso encontramos nas regiões cristianizadas (Síria, Ásia Menor, Samaria, Antioquia, Egipto, Roma, Chipre, Galia e em redor do mar Mediterrâneo) o proselitismo cristão, visto que o gnosticismo põe em perigo a identidade cristã, pois desacraliza, racionaliza e humaniza a religião.



b) Princípios básicos de gnosticismo



Na História da Espiritualidade interessa mais a gnosis cristológica, por essa contaminação é que filtrará depois as práticas espirituais.

Principio fundamental é o dualismo de forças: o bem e o mal, figurados em luz e trevas.

A experiência das forças contraditórias levou a conclusão de que existem os grandes princípios criadores, o Deus do bem e o Deus do mal. Segundo alguns, o Deus do A.T. é o Deus mau, impaciente e castigador; diferente do Deus do N.T., Pai e perdoador. O Deus mau é o Demiurgo, um dos Eones divinos desprendido do pleroma (plenitude) de Deus, por isso mesmo um ser divino inferir. No homem existe uma “chispa” (inteligência) de pleroma divino, por isso não todo mau em si.

O Deus do bem o criador da luz, do bem, do espirito. O Deus do mal é criador da matéria, que é má, o mesmo que o mundo e o tempo, o lugar e espaço da corrupção.



c) Salvação e perfeição no gnosticismo



Deixando de lado as complicadas teses dogmáticas gnósticas, nos fixaremos no processo espiritual gnóstico para conseguir a salvação, um caminho original com as suas consequências teológicas. A perfeição equivale a salvação.

“O conceito da perfeição, consequência de antropologia e das tradições mais antigas operantes em seitas gnósticas, diferem essencialmente do cristianismo. Sua finalidade não é nem a união com Deus nem tão pouco a identificação prática e dócil com a Vontade. A representação mesma da amizade com Deus carece de sentido, pois Deus é inteiramente incognoscível , inacessível, mais além de toda relação possível… Não Deus o fim da percepção gnóstica, mas sim o homem: o espiritual, cuja natureza divina tem de ser manifestada, de amadurecer ou deve ser conferida mediante um rito, segundo as seitas”

Para o cristianismo a perfeição está fundamentada sobre a graça conatural a Deus, não conatural ao homem, senão dada gratuitamente para fazer crescer os hábitos sobrenaturais, a união com Deus. Entre os gnósticos, a salvação liberta algo que está encarnado nele, conaturalizado (a chispa divina) ao tomar consciência da sua realidade de predestinado. A salvação se recebe por conaturalidade.

 É tão importante a ideia da salvação que, como escreve um especialista, “se chama ou pode chamar-se de “gnosticismo” – e também “gnosis” – a toda doutrina ou atitude religiosa fundada sobre a teoria ou experiência da obtenção de salvação mediante o conhecimento” .

 “A gnosis é, portanto, escreve ainda, o “conhecimento” de algo (de Deus ou de alguma propriedade de Deus), porém um conhecimento que, uma vez dado, e imediato e absoluto, transcendente com relação a simples fé (pistis?), conhecimento da Vida e da Luz, que é o mesmo que Vida e Luz, conhecimento de uma palavra, que é a visão, revelação e graça, “carisma”, verdade absoluta aprendida por um acto místico ou confiada mediante um hieróslogos , apocalipse visionária ou iniciação mistérica”

Com outras palavras, a gnósis faz com que o homem tome consciência de si mesmo, de que pouse uma chispa de pleroma divino que tem que resgatar para conceder-se a si mesmo a salvação. Daí que, o principal seja o conhecimento de si mesmo, não de Deus. É eminentemente antropocentrica.



d) O gnosticismo divide os homens em três categorias: material, animal e espiritual.



I. Material (os hylicos) – que vivem em desconhecimento e nunca se salvam.



II. Animais (psíquicos) – que vivem na fé que se salvaram de modo imperfeito, sem aceder a todo pleroma divino.



III. Espirituais (pneumáticos) – que resgatam, mediante o conhecimento revelado, a chispa caída de pleroma divino. Estes estão seguros da sua salvação, são uma raça eleita, são puros, estão por cima do bem e do mal e são eles que se entregam a práticas ascéticas que os liberta.

Alguns sistemas gnósticas aceitam um Salvador, que se encarnam se forma fantasmal em Jesus histórico, que tem corpo aparente e que nos revela o autêntico Deus, não o A.T. Mas sempre este salvador é secundário. O principal é a gnosis. Não interessa muito em Jesus histórico, nem a revelação ou as Escrituras e muito menos o cânon. Não há salvação sem a gnosis, senão só a revelação que desperta a consciência subjectiva da salvação conhecida por uma revelação pessoal. Tão pouco os preocupam as instituições eclesiásticas: a hierarquia, os sacramentos, a mesma Igreja, etc.

Em conclusão, o gnosticismo cristão (heterodoxo) não é uma mera filosofia, senão uma religião sincritista em que se manifestam conceitos muitos variados, também cristãos, porém compatíveis com o depósito da fé.



e) Concepção gnóstica do corpo, tempo e mundo

Se é um autêntico gnóstico quando se considera uma emanação de Deus bom, se sentirá molestado em realidade “mundanas” como procedente originalmente de Deus mau (o Demiurgo).

I. Corpo – o corpo para gnóstico é um hóspede molesto, um túmulo, uma prisão ou cadeia. O gnóstico percebe o seu corpo como mau e se autocontempla no corpo como uma situação violenta. É a um inimigo que está submetido.



“O juízo do agnóstico é que o corpo é mau, é a sede ou a encarnação do mal, se é não é o mal mesmo, e só pode ser objecto de ódio, de um ressentimento que se traduzirá em desprezo ou rebeldia”



Relacionado com o corpo está a sexualidade, também má. Coerentes com a ideia da maldade intrínseca da matéria, negam consumir carne, portanto são vegetarianos, e de beber vinho. Estão contra o matrimónio, não pelo abuso da sexualidade, senão porque manter as relações conjugais é submeter a alma a matéria. Esta mentalidade encontramos também nos escritos apócrifos.



II. Tempo – Em relação ao tempo, os gnósticos se sentem também incomodados, porque lhes parece falso. É uma criação de Demiurgo, como uma pertença arrancada a eternidade, mediante a qual Deus mau encadeia os homens neste mundo.



“O gnóstico acabará por manifestar frente ao tempo a mesma repugnância e a mesma hostilidade frente ao corpo. O tempo é também algo mau e a existência é o mal por isso permanece submetida ao tempo, prisioneira do tempo e vítima do seu enganosidade. Por esta razão, o gnóstico não aspira senão a ver-se libertado do tempo, estabelecido ou restabelecido, a margem de todo o acontecimento” .



III. Mundo – “O mundo é mau e, por esta razão, foi condenado, em que o homem experimenta o mal e sente mal, porque é mau, em princípio, está em existir, e existir no mundo” . O gnóstico se sente no mundo, porém não sendo do mundo. A única atitude válida será o estranhamento voluntário, não só do sentimento, senão de tudo. É como tirar o corpo de uma prisão.



Estas actitudes negativas não são exclusivas apenas dos gnósticos, podemos encontrar também de algumas filosofias, como pitagóricos, estóicos, platónicos.

Para terminar, vale a pena recordar uma interpretação de um texto paulino: 1Ts 5,23, donde Paulo fala de uma divisão tripartida do ser humano: corpo, alma e espírito (soma, pneuma, psyché), no sentido de que a perfeição no cristianismo consiste em viver “vida espiritual” (segundo espírito), para o qual é necessário superar o material (corpo, mundo, carne) e psíquico (alma, pensamento, contemplação).

Como consequência, alguns deduzem como necessária a fuga mundi, o rechaço do corpo (sobrevalorizando a ascese: jejuns, abstinências, pureza sexual …), e o refúgio na contemplação, não como um bem em si mesmo, também porque a acção é má e perigosa.



f) Consequências espirituais do gnosticismo



As ideias expostas têm consequências graves para a vida espiritual, para o caminho da perfeição cristã:



1. Em primeiro lugar, a salvação não procede de um salvador, nem se quer de Deus bom, de uma graça, senão que uma auto-salvação: recuperar a consciência, o conhecimento de que se é como um verdadeiro gnóstico.

2. O conhecimento em si mesmo conduz a um ensinamento, um egoísmo individualista, a um personalismo subjectivista, a um interiorismo preocupado somente com a sua auto-salvação.

3. A perfeição consiste na regeneração, em torno da origem donde saiu, ao estado paradisíaco desde o retorno pessoal (conhecer-se a si mesmo). É uma perfeição elitista, aristocrática.

4. As revelações que recebem os perfeitos não podem servir nem ser divulgados para o uso material ou animal. Não é uma santidade fundada na fé ao alcance de todos que a recebem como dom.



São coisas que durante séculos influencio a espiritualidade ocidental de uma ou de outra maneira. Por esta razão o que falamos é decisivo para a história da espiritualidade.





1.2. Manequeísmo

Mani nasceu em Babilónia cerca do ano 216. Foi educado numa seita mandeísta , possivelmente convencido por umas certas supostas revelações de que estava destinado a fundar uma religião universal, se dedicou a pregar em várias regiões: Índia, Pérsia, Egipto. Depois da sua morte no 277, seus seguidores se estenderam por várias partes do mundo, influenciando os estratos populares do cristianismo.

O manequeísmo é um aglomerado de princípios religiosos de vária procedência. Admite também, como os gnósticos, o dualismo radical, os princípios supremos, um do bem e outro do mal, um da luz e outro das trevas, submetido o Bem ao Pai das Grandezas e o Mal ao princípio das trevas. Vencido o primeiro homem por um princípio do mal, o Pai das Grandezas envia o seu espírito para libertar o homem da matéria que o aprisiona. Tem mensageiros: Buda, Zoroastro, Jesus e o último, Mani.

O homem existe na luz e nas trevas. Conhecer esta situação é o começo da redenção. Os autênticos maniqueos (os escolhidos ou eleitos, diverso dos ouvintes) tem que abster-se daquilo que pode contaminá-los, por isso se impõe rigorozas privações: na boca – não pronunciando palavras obscenas, nem comendo alimentos impuros, como a carne e o vinho; nas mãos – não fazendo trabalhos servis, tocar certos objectos, como armas; no casamento – abstendo-se das relações sexuais, e, por consequência, do matrimónio.

Os ouvintes (discípulos), olhando para os eleitos, esperam que algum dia reencarnarem-se em algum eleito.

Só os eleitos podem ser redimidos e a redenção-salvação consiste em ir resgatando partículas de luz separando-se da matéria. Segundo eles, o mal é a contemplação de partículas impuras (matéria), e o bem, descontaminação dessas impurezas, uma espécie de desmaterialização. Isso se realiza primordialmente numa vida ascética vivida instituicionamente ( o mosteiro, posterior ao budista, porém anterior ao cristianismo). Daqui que a principal actividade do eleito é a abstenção de tudo o que contamina a Luz.

Os seres contém mais partículas de luz segundo o grau de perfeição, por isso que os animais tem mais que as plantas. Não consomem a carne porque não querem matar os seres com maiores partículas de luz para não impedir a teofania da Luz.

Aceitam os princípios do N. T. em que se vem mencionada a luz e as trevas (Ev. De João), os princípios para libertar a alma das cadeias da matéria.



1.3. Encratismo

Seita fundada por apologista Taciano (nascido no ano 170). Para Taciano o matrimónio é um mal em si mesmo. A vida conjugal é um serviço ao demónio. Segundo um testemunho de Epifanio, um tal Severo, discípulo da seita, dizia que a mulher era uma criatura do demónio. O homem desde a cintura para cima era obra de Deus bom, da cintura para baixo era obra de demónio. A união conjugal é muitíssimo mal . Por isso não de estranhar que Taciano condena Adão a um castigo eterno por ter sido o primeiro a usar do matrimónio contribuindo para o mal da humanidade. Também são rigorístas no uso da carne e do vinho, “alimentos fortes” que potenciam a obra do mal da matéria e do Demiurgo.



1.4. Mesalianos

Os mensalinos são todavia uma seita confusa. Parece que são originários da Síria ou Mesopotamia. Nascida na metade do século IV e se estenderam para a Ásia Menor, Persia e outros lugares. Alguns foram percursores dos alumbrados e os quietistas.

A sua doutrina a conhecemos por condenações e confrontos que por suas obras ou práticas.

De fontes disponíveis se deduzem que o mensalianismo admite como princípio básico que o homem está habitado por um demónio, ao que depois do baptismo, e só com a oração que é expulso. Por isso a oração é a sua principal actividade como indicam os seus nomes originais: mesaline, em síriaco, e euchitai, em grego, significa “orantes”.

A oração contínua junto com ascese dura, além de expulsar o demónio, provocam a vinda do Espírito Santo, depois de vários anos de prática. Vida sensível, perceptível que faz do homem um “espiritual”, capaz de carismas sobrenaturais: discernimento e conhecimento dos corações, visões, revelações, profecias. Podiam até ver a Trindade com os olhos corporais. Esta presença do Espírito faz do homem perfeito. Por isso, não teme paixões, se torna implacável com o corpo e com a alma.

No estado espiritual não se tem obrigação de trabalhar, actividade vergonhosa, para dedicar-se mais a oração, e por isso vivem de esmola. Tão pouco necessitam de fazer penitência, são já perfeitos, nem sacramentos ou estruturas eclesiais, pois são mediações inúteis ou indiferentes. Se consideram absolutamente libertados de toda a atadura moral. Em moral sexual são libertinos, e vagabundeando pelas cidades em grupos mistos, observando uma conduta anti-social, contra o matrimónio e a família .



1.5. Montanismo

Na Igreja desde das origens viveu uma tensão escatológica que esperava a pronta vinda do Senhor a culminar a história do mundo. É uma constante quase de todos os séculos.

Olhando para o II e III séculos podemos encontrar muitos escritos que fala do assunto: Didaké, a carta de Pseudo-Barnabé, Hermas, e o seu Pastor, Tertuliano, S. Cipriano.

Alguns se associaram a ideias milenaristas, que é uma forma específica de espera escatológica: o pronto regresso do Senhor para reinar com os seus eleitos durante mil anos (cfr. Apoc. 20,4), vem em um reino de delícias temporais (milenarismo crasso ou materialista), vem com um reino espiritual (alguns o aplicam para o reino da Igreja, o Senhor que vem para julgar, premiar e castigar).

As ideias milenaristas prosperaram também entre autores “eclesiásticos”. Porém foram defendidas com mais força e com consequências morais mais práticas por um movimento chamado montanismo.

Montano, um frigio que havia sido sacerdote de Apolo e de Cibeles, pregava a “nova profecia” nascido no ano 170, pouco depois da sua conversão ao cristianismo, pretendendo ser um profeta do Espírito Santo.

Quando Montano prometeu aos seus seguidores a nova profecia teve um lugar importante na Nova Jerusalém, e com entusiasmo aliciou massas populares. Na sua profecia anunciava a vinda de Messias e consequentemente o fim do mundo. Alguns bispos mobilizavam as massas para ir ao seu encontro. Em Papuza é onde iria ter lugar este acontecimento, se construiu, com dinheiro de todos, uma casa e desde já se organizou a propaganda.

Montano viu confirmada a sua profecia com visões de colaboradores femininas Priscila e Maximila, e o Eusébio nos transmite a notícia: “Desde o momento em que foram chamados pelo Espírito, abandonaram os seus maridos” (HE, V, 18,3).

A igreja hierárquica tardou em dar resposta, porém mais tarde condenou a sua doutrina. Nascia no ano 205 Tertuliano, ilustre escritor e tribuno, se associa ao movimento dando-lhe um novo impulso. Não é estranho que este talentoso africano caíra nas suas redes, dando um tom rigorista e o seu desejo de manter a pureza da Igreja cristã.

Tertuliano quer construir um cristianismo cerrado, de práticas ascéticas muito estritas, porém ao mesmo tempo quer dar ao movimento um carácter universal. O rigor se expressava em práticas de alguns conteúdos, em desencorajar ao matrimónio, em ser firme ante a perseguição, na oposição a hierarquia e submissão aos próprios profetas, em dar aos pecadores a absolvição dos pecados de adultério, apostasia e homicídio.

Este cristianismo fanático, fundamentada em visões e profecias, teve pouca consistência e se desenvolveu apenas até o IV século.



1.6. Consequências destas manifestações no campo espiritual



O cristianismo nasceu e iniciou a sua expansão num momento de grandes crises ideológicas (religiosa, cultural, filosófica). A teologia cristã, a ortopraxis, a moral e a “espiritualidade” nasceram também no mesmo terreno agitado, numa situação traumática. Sendo assim, seria de perguntar se a praxis cristã, a moralidade, a espiritualidade, não sofreram esta influência da explosão pagã religiosa?

Crises gnósticas e suas escolas dualistas, o homem platonizado com as suas prevenções contra a matéria e o corpo, que potenciam a tendência gnóstica e suas predilecções para a especulação e a contemplação.

Crises maniqueias com as suas doutrinas de pequenas partículas de Luz divina para o homem com base de renúncia.

Crises montanistas e escatológicas com as suas alucinantes profecias sobre o fim do mundo.

Todos apoiando-se em consciências messiânicas, em fábulas míticas e mágicas, em noções arquitípicas, em iluminações, em visões e profecias, etc.

Tudo isso influenciou grandemente o mundo da espiritualidade, por exemplo: a sobrevalorização da virgindade como um estado de vida, em detrimento do matrimónio, a prevenção contra o corpo (sexualidade), a confrontação dialéctica entre a acção e contemplação, a praxis penitencial, certas abstinências, da carne por exemplo, dos olhos, o individualismo da vida espiritual, certos “estados” elitísticos, as profecias e os carismas, e por aí fora. Todo isso, duma ou doutra maneira, influenciou a vida espiritual até aos nossos dias.



2. A espiritualidade do monacato e do deserto

Na primeira parte, ou melhor até o século IV, vimos a constante da vida cristã que se desenrolou num clima de perseguição tanto do pondo de vista político como no confronto com religiões pagãs, a exemplo do gnosticismo e montanismo que acabamos de ver, é de salientar que também neste período o número de cristãos era reduzido, tendo em conta a perseguição.

Agora muda o clima. Com o Édito de Milão de Constantino em 313, a Igreja perseguida passa a ser tolerada, preferida, e no final do século IV, a Igreja cristã torna-se única e perseguidora das outras religiões pagãs.

Também muda a situação política, económica e cultural do Império. O império se fragmenta em duas partes, o Ocidental e Oriental. No ocidente vive-se a crise das evasões pagãs, como francos, alamanos e saxões (± 352), bem como os visigodos que envadem a Gália Meridional e a Espanha (418). Perante esta situação a Igreja assume uma missão nova e grandiosa. Apoiado pelo o aparato estatal romano e pelas leis dos reinos bárbaros (estrangeiro, cruel), potenciará a sua presença desde o centro, Roma, capital abandonada pelas autoridades civis e mantida como sede do Papado.

Os séculos IV e VII são os séculos de uma evangelização, de expansionismo proselitista da Igreja. Séculos fecundos e de criatividade. Este é o grandioso marco de fundo em que se desenrola a vida espiritual dos cristãos.

Surgem novas instituições, novos grupos de vida espiritual, heresias que contorneiam o viver cristão. De novo o povo de Deus, a massa humana que é obrigado a ser cristão. Os pastores e escritores propõem novos caminhos. Há transformação de cristãos em mestres pela suas ciências e santidade. É a época dos grandes Padres da Igreja. Todavia a Igreja docente é normativa, se está formando a grande “Tradição” da Igreja.

Ao historiador que contempla este segundo momento da história da espiritualidade dá a impressão de que a espiritualidade nasce de um pequeno núcleo originário e se vai desenvolvendo no tempo em distintos espaços geográficos, nas diversas línguas, raças e culturas, porém a constante está configurada sobre Jesus de Nazaré. O núcleo da evolução é sobre o mesmo e idêntico sentido, no campo da dogmática. A espiritualidade é mais vida que ciência.

Na espiritualidade do monacato e do deserto vai ao encontro com as origens da vida religiosa, uma forma peculiar de ser cristão. As fontes, que no período anterior nos falavam do martírio, da virgindade, etc., agora se referem a uma instituição nova com suas próprias terminologias: monge, monacato, ermita, ermo, regras monásticas, ascetas, etc.

Não interessa na história da espiritualidade seguir o desenvolvimento histórico das instituições, senão penetrar no interior dos cenóbios e ermitérios para surpreender o monge, o ermita e ver como vive “sua vida espiritual”.



2.1. A espiritualidade monástica

Antes de falarmos o monacato como “espiritualidade”, vamos ver um pouco a sua identidade. Por outro lado, não podemos afirmar hoje que o monacato seja um fenómeno exclusivamente cristão. Antes de Cristo, podemos encontrar outras religiões e filosofias, como por ex., o budismo, essênios, pitagóricos…, um fenómeno parecido ou algo inerente a eles. Na comunidade dos crentes surge, espontaneamente, um grupo de fiéis que querem viver com mais intensidade a ideologia, a sua religião.

É preciso considerar o monacato cristão é um produto autónomo, não dependendo das formas monacales preexistentes, não nasce de um ponto originário e se expande por centro ou preferias, senão que brota espontaneamente em pontos geográficos dispares. Variam, é evidente, as formas, mas a essência é a mesma.

É difícil afirmar que existe uma espiritualidade monástica visto que os cenóbios são diversos, apesar da forma de vida ser idêntica. O que podemos afirmar é que podemos encontrar características comuns de movimentos laicais e religiosas existentes na época.



a) A chamada

Para entender o sentido dessa vida temos que analisar os motivos que tiveram os cristãos dos séculos III e IV para se deslocar ao deserto. O problema de base é da vocação.

O monge não se considera um monopolizador da espiritualidade nem carismaticamente chamado, senão que crê ser um cristão normal, coerente com a graça do baptismo. Se sente fundamentalmente chamado no baptismo.

A vida monástica será um lugar, uma instituição onde se pode viver a graça baptismal, uma possibilidade entre outras, considerada por ele mais adequada que outras (por ex., a vida da família na cidade, a vida de trabalho na sociedade, etc.).



b) Motivações

Os motivos que tiveram os monges para ir ao deserto, aos mosteiros, são muitos e complexos.

- Alguns, os mais fracos, se decidiram ser monges para evitar uma situação social e económica desfavorável: empregados, a sujeição aos pais, a “cólera de uma mulher”, etc.

Fora destas razões menos fiáveis colocam-se tantos outros mais credíveis, tais como:

- A ida ao deserto como protesto ao tempo em que a vida cristã se está desventurada devido ao pretencionismo estatal da Igreja.

- Alguns falam da saída das cidades para deserto em tempos de perseguição. Assim interpreta Jerónimo a vocação eremítica de Paulo de Tabas, que se refugiou no deserto em tempos de perseguição de Décio (250).

- Outros aludem o monacato como sucessão do martírio ao desaparecer este em tempo de paz. Os monges e os solitários viram a possibilidade de um martírio quotidiano na vida monástica e eremítica.

O monacato, por outro lado, mostra a essência de ser cristão. Assim temos os primeiros monges que buscaram modelos no A. e N. T., desde Adão, Abraan, Isaac, Elias, Eliseo, João Baptista, etc., personagens que tiveram familiaridade com Deus ou se refugiaram no deserto.

O que justifica no cristianismo o nascimento do monacato é a pessoa de Jesus (Jesus no deserto – as tentações: Mt 4,1-11), seu “seguimento”, como caminho para se perfeito.

 Em consequência, uma certa marginalidade e sentimento utópico são vividos pelos primeiros monges, porém, por detrás de tudo isso, está a busca de Deus, o encontro com Cristo, com o seu Evangelho, como caminho da perfeição cristã.

c) Configuração de uma espiritualidade monástica

A pergunta que fizemos antes: existe uma espiritualidade monástica?, tem a sua resposta, sim, porém idêntica a espiritualidade cristã.

A vocação é única: cristã. Os monges a vivem em situações sociais deferentes, uma instituição nova, práticas ascéticas especiais, etc. Porém as grandes exigências evangélicas são idênticas, as necessárias para gerar o “homem novo”.

O programa “cristão” que vivem os monges é o traçado pelos grandes teóricos, padres do monacato, o que marca o Evangelho.

“O monge primitivo não aparece de modo algum como “especialista”, sua vocação não uma vocação especial, considerada por ele mesmo ou pelos outros mais ou menos excepcional. O monge não mais que um cristão, é mais exactamente um piedoso laico, que se limita a utilizar os meios mais radicais para que seu cristianismo seja integral” .

Se algum se considera especialmente eleito, perfeito, não pertence a tradição autenticamente monástica, se bem que é alguma seita herética.

Os monges se apropriam daqueles termos que originalmente significam seguidores de Jesus: irmãos, santos, cristãos. O qual significava que a vida cristã tinha se deixado de se praticar a sério fora dos ambientes monásticos. O mesmo podemos dizer dos temas espirituais, que inicialmente se aplicavam aos monges, por ex., o tema da milícia espiritual, a vida angélica, vida do paraíso, segundo o baptismo, martírio espiritual, vida apostólica, etc.

Não é uma usurpação dos termos, senão um nascimento de uma vida, que depois geraria o conceito de “vida religiosa” igual ao estado de perfeição, visto que não se encontrava na simples vida cristã. Por outro lado, não podemos entender tal situação como fuga mundi e outras negações: do corpo, da carne, do servilismo, mas como disse historiador Paulo Orosio, que escrevia ao princípio do século V, definindo os monges como “cristãos que se entregam a única obra da fé, depois de renunciar a múltiplas acções das coisas seculares” .



2.2. Espiritualidade do Deserto

O deserto é lugar geográfico e uma atitude anímica (relativo a alma) . Como lugar de oração está cheio de sugestões e ressonâncias bíblicas. Forma parte da história da salvação.

O “deserto” para o povo de Israel, evoca o lugar de encontro com Iahweh salvador, onde se manifestam as maravilhas de Deus. Lugar onde não existe nenhuma ajuda temporal, onde o povo só confia em Deus.Para os acontecimentos históricos-salvíficos o deserto tem sido um lugar de referência nas história de ascese cristã, e, consequentemente na história do monacato.

Existe uma “Espiritualidade do Deserto” fazendo referência os primeiros monges baseado na Sagrada Escritura. Esta espiritualidade é caracterizada pela solidão, pelo silêncio, a segregação do mundo, a familiaridade para a contemplação.

O monge cristão tem que buscar no deserto a familiaridade com Deus. Esta ideia o expressou o profeta Oseias (2,16). Curiosamente no N. T., temos o exemplo do próprio Jesus que se retirou no deserto para ser tentado pelo demónio (cfr. Mt 4,1-11). O monge vai ao deserto com a mesma finalidade.

O deserto, lugar estéril por antonomásia, era considerado como o habitat dos demónios, lugar de castigo e do pecado humano. Por isso, o ermita, indo para o deserto proclama com a força dos gestos que quer combater, com a força da graça e com a ajuda de Cristo, as forças do mal personificadas no diabo.

A vida do S. António (250-356 – Memória: 17 de Janeiro), primeiro ermita . A primeira formação da vida monacal escrita por S. Atanásio , explica não só alguns factos históricos, senão também uma teologia e espiritualidade do deserto.



“La Vita Anthonii”, de S. Atanásio, não é um livro de história, senão uma teologia, uma cristologia, uma antropologia teológica. A Vita narra com todos os detalhes as insinuações, as agressões diabólica, e a vitória de António significa que Cristo é superior a Satanás. Assim como vem nesta passagem:



“O santo abba António, quando estava no deserto, foi tomado pela amargura e por uma grande escuridão de pensamentos. Disse então a Deus: ‘Senhor, quero ser salvo, mas os meus pensamentos não me permitem; que fazer da minha aflição? Como ser salvo?’ Pouco depois, tendo se levantado para sair, António viu um igual a si sentado a trabalhar, que depois se levantou para rezar, voltando-se a sentar de novo para entrançar uma corda, levantando-se de novo para rezar. Era um anjo do Senhor enviado para corrigir e o sossegar. E ouviu o anjo a dizer-lhe: ‘Faz assim e serás salvo!’ Alguém perguntou a abba António: ‘Que devo fazer para agradar a Deus?’ O velho respondeu: ‘Faz o que vou recomendar-te: onde quer que vás, tem Deus diante dos teus olhos durante todo o tempo; o que quer que laças ou digas, que seja de acordo com o testemunho das santas Escrituras; onde quer que mores, não te mudes facilmente. Observas estes três preceitos e serás salvo.’ Abba António disse a abba Poemen: ‘Eis a grande obra do homem: culpar-se da sua falta perante Deus, e precaver-se contra a tentação até o último dia’. Assim dizia Antão aos seus discípulos: ‘Por isso, filhinhos, não nos desencorajemos e não pensemos de sofrer por um período, ou de fazer alguma coisa de grande. As paixões deste mundo não são dignas de esplendor futuro que deverá revelar-se em nós. Nem olhando o mundo devemos acreditar de ter renunciado a muitas grandes coisas. Toda a terra é pouquíssima em comparação ao Céu. Se fossemos patrões de toda a terra e renunciássemos a esta, nada de tudo o que renunciamos seria digno do Reino dos Céus. Como um que despreza uma moeda de bronze para guardar cem moedas de ouro, que é dono de toda a terra e renuncia a esta, perde pouco e recebe algo cem vezes maior’.” (Do livro: Os padres do Deserto, editorial Estampa, 1991, pp. 28-29)



Que o homem, com ajuda da graça, com ascese rigorosa, a fé, a oração, vence todas as tentações do demónio. O cristão tem armas suficientes para vencer o mal que está dentro de si e que vem para o exterior. Cristo vence o demónio em S. António e em todos os cristãos, isso significa que Cristo é superior a Satanás.

Também pode haver uma interpretação simbólica do deserto interior do coração humano, em sua essência e subconsciente. A luta entre o bem e o mal que o cristão tem. Quem se confia na graça de Cristo, se resolve favoravelmente.

1.6. Consequências destas manifestações no campo espiritual



O cristianismo nasceu e iniciou a sua expansão num momento de grandes crises ideológicas (religiosa, cultural, filosófica). A teologia cristã, a ortopraxis, a moral e a “espiritualidade” nasceram também no mesmo terreno agitado, numa situação traumática. Sendo assim, seria de perguntar se a praxis cristã, a moralidade, a espiritualidade, não sofreram esta influência da explosão pagã religiosa?



Crises gnósticas e suas escolas dualistas, o homem platonizado com as suas prevenções contra a matéria e o corpo, que potenciam a tendência gnóstica e suas predilecções para a especulação e a contemplação.



Crises maniqueias com as suas doutrinas de pequenas partículas de Luz divina para o homem com base de renúncia.



Crises montanistas e escatológicas com as suas alucinantes profecias sobre o fim do mundo.

Todos apoiando-se em consciências messiânicas, em fábulas míticas e mágicas, em noções arquitípicas, em iluminações, em visões e profecias, etc.



Tudo isso influenciou grandemente o mundo da espiritualidade, por exemplo: a sobrevalorização da virgindade como um estado de vida, em detrimento do matrimónio, a prevenção contra o corpo (sexualidade), a confrontação dialéctica entre a acção e contemplação, a praxis penitencial, certas abstinências, da carne por exemplo, dos olhos, o individualismo da vida espiritual, certos “estados” elitísticos, as profecias e os carismas, e por aí fora. Todo isso, duma ou doutra maneira, influenciou a vida espiritual até aos nossos dias.



3. A praxis monástica



As formas institucionais monásticas tiveram a sua origem desde a experiência eremítica de S.to António (+356), “espelho dos monges”, seguido por S.to Atanásio, passando por cenobitismo comunitário de São Pacomio (+346), São Basílio (+379) e João Cassiano (+435), todos autores das regras e escritos monásticos, menos S.to António, até chegar ao mais famoso fundador do monacato, São Bento de Nursia (+547). Sem também nos esquecermos do monacato espánico e seus grandes mestres, São Leandro, S.to Isidoro e São Fructuoso, dos séculos VI e VII, que animaram a vida cenobítica no sul da Espanha (a Bélgica), e no Noroeste (o Bierzo).



O historiador conta com fontes excelentes para conhecer a praxis monástica, se bem que nem tudo o que os autores monásticos contam tem que se tomar ao pé da letra, porque nem sempre escrevem história, senão teologia.



As Histórias dos “Pastores de Erma” necessitam de uma “clave” de leitura porque o conceito de história que eles tinham não é idêntico ao nosso. Portanto, tem um fundo de verdade histórica com os relatos de uma leitura teológica dos factos.

 Aqui temos as principais fontes (obras):



- Os Apothegmata Patrum, ou Verba Seniorum, colecção de sentenças espirituais e anedotas dos eremitas do baixo Egipto.

- A Vita Anthonii, biografia teológica escrita por S. Atanásio, como modelo de monge e do cristão.

- A Historia monacheorum in Aegipto, atribuída a Rufino, escrita no final do século IV.

- A Historia lausiaca, de Paladio (+431), anacoreta de Egipto.

- As Vidas de Pacomio, e sua Regra.

- As Regras morales, ou Asceticón, de São Basílio, o Grande.

- As Instituciones e as Coleciones, de Juan Casiano.

- A Historia religiosa e a Historia ecclesiastica, de Teodoreto de Ciro, sobre os monges sirios.

- O Pratum spirituale, de Juan Moskos.



Em todas estas obras podemos contemplar a vida dos primeiros cristãos que foram para o deserto para viver com radicalidade o Evangelho. Podemos seguir a vida quotidiana, as práticas monásticas, seus ideais, suas lutas para chegar a madurez cristã.



Na praxis (prática) monástica podemos encontrar 4 características: a Sagrada Escritura, vida do monge, a segregação do mundo, como condição prévia, a luta ascética como caminho da perfeição e, as excentricidades ascéticas.



a) A Sagrada Escritura, vida do monge

Pode nos parecer estranho, mas é verdade que a maioria dos monges eram leigos camponeses, analfabetos. A Escritura era a vida dos anacoretas e cenobitas. Só algumas pessoas privilegiadas lêem a Sagrada Escritura com critério cultural; são os representantes do monacato sábio, os grandes Padres da Igreja. Assim podemos encontrar alguns nos ambientes monásticos: Jerónimo, Ambrósio, Agostinho … no Ocidente; Atanásio, João Crisóstomo, Basílio, Gregório Nazianceno… no Oriente. São os grandes comentaristas da Sagrada Escritura em tratados, cartas, homilias, etc.



Não é um exagero dizer que a espiritualidade monástica é iminentemente uma experiência religiosa que nasce do encontro com a Palavra de Deus. Muitos leigos chegaram a identificar a leitura da S. Escritura com a profissão monástica, coisa que S. João Crisóstomo negava.



Se damos valor normativo às Regras monásticas, sobre as quais se formavam os candidatos, não nos surpreende que em grande medida, são uma colecção de textos bíblicos do A. e N. T., como se a Bíblia fosse a autêntica regra do monge. Não só as palavras, mas também os actos, os exemplos e figuras históricas. É sintomático que alguns seguiram a profissão monástica por ouvir ler a S. Escritura, como é o caso de S.to António, de quem diziam que retia tudo o que se lia (Vita Anthonii, 3).

Na organização paconiana da vida monástica, um dos primeiros trabalhos do candidato era aprender a ler, para que podesse alimentar-se da Escritura, recitar os salmos, dedicar-se a lectio divina. Onde não existia condições se exigia pelo menos de aprender os textos fáceis em memória.



Além da leitura ou da audição, o monge se dedicava a meditação da Palavra de Deus, que não é um mero exercício mental ou discursivo, senão uma completa operação que vai desde a leitura, memorização, a intelecção plena dos sentidos e o complemento do conteúdo, a praxis cristã. Para tal, o monge tinha o tempo disponível, porque esta tarefa era o prato principal do dia. Durante o trabalho, ou quando andava pelo mosteiro, o monge continuava mastigando a Palavra lida.



O objecto especial da meditação era aqueles textos sobre os quais se fundamentavam as virtudes especiais da vida monástica: caridade, obediência, pobreza, virgindade, separação do mundo, oração contínua, etc.



Junto a S. Escritura incluía, também, como norma de vida, a tradição e as tradições. Os legisladores apelam à “tradição dos Padres” ou à “tradição dos maiores”. Os legisladores estão conscientes de seguirem os passos dos cristãos que os precederam no caminho. Neste sentido, os monges querem engrenar com a primeira comunidade de Jerusalém.



b) A segregação do mundo, como condição prévia

Esta é uma das principais razões para abraçar o estado monacal, embora possamos encontras outros motivos, como vimos acima, o desejo do céu e da perfeição, o peso de consciência por ter ofendido a Deus com os pecados (exige a conversão)…



Escutado a chamada, o monge seguia a Cristo, com a renúncia e o desprendimento total. Renúncia aos bens, aos vícios (afectos e tendências desordenadas – contemptus mundi – o mundo) à terra e família. Era uma verdadeira e definitiva segregação do mundo, vendo este em sentido pejorativo.



A segregação tinha graus e passos:



1º. – Segregação física da família – Não criar uma família própria para renunciar ao matrimónio.



2º. – Ida ao deserto para viver como anacoretas ou cenobitas – Geralmente os conventos eram edificados fora das vilas e cidades.



c) A luta ascética como caminho da perfeição

As Regras monásticas abundam em princípios para conseguir a vitória na luta contra os vícios, e acréscimo das virtudes.



A espiritualidade do monacato e do deserto se pode classificar da luta ascética. Não pretendemos julgar se mantiveram o equilíbrio entre o activo e o passivo, entre o próprio esforço e a graça. Numa palavra, a santidade para eles era mais exercício (ascese) do que doação de Deus. Há suficientes indícios para pensar na ênfase que punham na luta, engrossando assim a rica tradição pelagiana . Esta atitude inicial explica a quantidade e a qualidade dos seus exercícios ascéticos, as vezes estranhos e exagerados para nós.



i. A oração



Chamada horas mortas do dia e da noite. Na oração, o monge vive e experimenta a familiaridade com Deus (um enamorado de Deus), encontro com Deus que salva aperfeiçoando a vida. O monge era um “homem de Deus” e o expressava no modo de orar. Através da oração se conseguia a apatheia, o controle dos apetites, a paz interior. A oração inicial se seguia continuamente, terminando em theoria, na contemplação. Alguns, exagerando, dizem que era o único ofício do monge.



Os padres dos mosteiros não estão interessados em classificar formas de oração, porque o que lhes preocupa não é distinguir graus ou formas, mas sim que a oração seja uma comunhão íntima e amorosa com Deus .



O ideal do monge era a oração contínua, tema que o preocupa não como teoria, mas como cumprimento do preceito do Senhor de orar sempre, sem interrupção, dia e noite. Materialmente, era uma utopia, porém descobriram que se podia cumprir mediante a oração implícita impregnando o espírito de oração em todos as obras e acções, conseguindo um “estado de oração” permanente. Enquanto se trabalhava, o entendimento e a memória podiam ser dirigidos a Deus.



O método que se seguia, vindo do Oriente, era o hesicasmo. O hesikia é uma operação completa que abarca dois aspectos:



1º. – Estado de vida – que implica a solidão e o silêncio, a segregação do mundo, criando a paz e a tranquilidade.



2º. – Estado de alma – que é essa tranquilidade espiritual como âmbito da contemplação e a união com Deus.



A primeira é a preparação da segunda. O hesikia não se adquire sem uma completa ascese do corpo e da alma. Era tão importante que no IV Concílio da Calcedónia (451) se encorajou aos monges de praticar a hesikia, que é o mesmo que tender a perfeição.



Podemos, por outro lado, encontrar também métodos como: a recitação frequente de jaculatórias, ditas mais com o coração do que com a língua.



Esta antiga tradição teve especial ressonância nas escolas semíticas do século XVI com S. João Clímaco; renasceu no século X-XI em Constantinopla, com Simeón, o Novo Teólogo, e no Monte Athos, no século XIV, passando depois para o monacato eslavo e russo. Na 2ª metade do século XIX apareceu um livro anónimo com o título o Peregrino Russo, que relata um piedoso leigo que se exercita nesse método de oração contínua a imitação dos antigos monges, tomando como refrão: “Meu Jesus, tem misericórdia de mim”.



Da Filocalia se lê o staretz um texto de Simeón, o Novo Teólogo:



“Sentando-se só e em silêncio. Inclina a cabeça, centra os olhos, respira devagarinho e imagine que estás vagueando no teu coração. Dirige ao coração todos os pensamentos da tua alma. Respira e diz: ‘Meu Jesus, tende misericórdia de mim’. Di-lo movimentando docilmente os lábios e di-lo no fundo da tua alma. Procura não seguir todo outro pensamento. Permanece tranquilo, tem paciência e repeti-o com maior frequência que te seja possível”.



ii. O trabalho



Seguia, na ordem de importância do monge, o trabalho. Trabalho inicialmente manual e, em ambientes cultos, também havia trabalho intelectual.



O trabalho tinha várias finalidades:

- evitar a ociosidade ;

- ganhar o sustento com o suor do seu trabalho;

- oferecia a possibilidade de exercer a caridade fraterna;

- ter a autonomia económica e não depender do trabalho dos outros;

- finalmente, o trabalho servia como mortificação.



O trabalho tinha os seus perigos a evitar: podia gerar a avareza, distrair o pensamento do principal, que era a oração contínua. Por isso, os trabalhos eram muito mecânicos e simples, que podiam combinar-se com a recitação de salmos, com a oração interiorizada, e que não perturbasse a solidão e o silêncio. Trabalho que poderia ser agrícola, como o cultivo de campos, ou nas próprias celas, fazendo esteiras, cestos, etc. Nunca com finalidade lucrativa, ou que obrigasse a faltar a lei da clausura.



iii. Austeridade de vida



Para controlar as tendências instintivas da carne e poder observar mais a castidade, os monges optaram por uma vida ascética, marcada por jejuns, abstinências e vigílias, a separação física das mulheres. Alguns se gloriavam de terem estado 40 anos sem ver nenhuma mulher, até que os mestres mais exigentes exigiam de evitar familiaridades.



Alguns monges moderados nas suas práticas ascéticas eram frequente de não comer carne nem beber vinho. Muitos eram vegetarianos. A abstinência da carne, especialmente dos quadrúpedes, assim como o vinho, estava muito ligada com a prática da castidade. Eram considerados alimentos incitantes ao sexo. Ao longo do dia apenas comiam pão, água, leite e sal .



O monge dominava também o seu corpo mediante as vigílias, subtraindo o tempo do sono nocturno para dedicá-lo a oração e a espera de Cristo.



d) As excentricidades ascéticas

Podemos encontrar especialmente nos mónacos da Síria e da Mesopotâmia.

São famosos os estilitas , que viviam juntos de uma coluna de vinte metros de altura, numa plataforma muito reduzida construída sobre ela. O primeiro estilita conhecido é Simeón, sírio de nascimento (389), que viveu numa coluna mais de 40 anos. Os estilitas queriam experimentar as moléstias que os fiéis causavam aos anacoretas, e decidir, por um desejo maior de separação do mundo, porém acabaram sendo mais visitados que os eremitas do deserto ou dos bosques. Chegaram a ser conselheiros e pregadores famosos desde a sua improvisada cátedra.

Não eram os únicos que inventaram formas excêntricas de piedade, as vezes para competir com os outros ascetas, parecia ser uma espécie de carreira olímpica para a santidade. Por exemplo, habitar em alpendres de capim, em cavernas em que viviam encurvados; o pior, mesmo com tempestade, se mantinham de pé. Outros ainda viviam a sombra de árvores, alimentando-se das suas raízes, ervas, fruta e água. Uns carregavam cadeias ou correntes pesadas que os obrigava a viver sempre curvados. Monges magriços e esqueléticos, sem nenhum aspecto humano, pareciam cadáveres ambulantes. Isso tudo, pela má compreensão de um martírio cruento. Vivíamos um pólo oposto daquela concepção cristã, do martírio como doação plena da vida.



4. Alguns grandes autores espirituais da época



4.1. Santo Agostinho de Ipona (354-430)



Em S. Agostinho, as linhas mestras espirituais, coincidem com várias situações que agitam o seu magistério.

Homem de profundo talento, de dilatados conhecimentos filosóficos e humanistas (procedente de várias escolas, como o agnosticismo, o maniqueísmo, o platonismo), professor de retórica, de uma rica e variada experiência vital (marcados pela sua vida pecaminosa antes da sua conversão ao catolicismo), vive num tempo em que o Império Romano começa a desmoronar-se. As obras de Agostinho são riquíssimas e variadas. Um génio do século V, cuja sombra se projectou sobre toda a Idade Média, e cuja influência se faz sentir até aos nossos dias.



As linhas mestras da vida espiritual agostiniana são as seguintes:

a) O dogma, funcionamento da espiritualidade



A espiritualidade se fundamenta na dogmática, como sucede com os grandes Padres da Igreja neste período.

Agostinho tratou profundamente os mais importantes temas da teologia, e a espiritualidade neste tempo é o cume da teologia que ilumina e alimenta a vida.

É uma espiritualidade bíblica, teocêntrica, eclesiológica, mariana e trinitária.

Em Agostinho, a Trindade é a meta da experiência cristã. Cristo é o caminho, e Deus, a meta. A Igreja é o lugar onde se realiza a experiência na fraternidade universal. A Escritura, lida na Igreja, é o alimento primordial.



b) Espiritualidade antropológica



É uma espiritualidade antropológica porque o homem é o protagonista desta aventura religiosa, e que se aperfeiçoa com os meios que Deus oferece, com a colaboração da sua liberdade.

O homem é um campo de batalha em que se enfrentam forças contrapostas: pecado e graça. O pecado é a dissemelhança com Deus, a graça é a semelhança.

O desenrolo da vida espiritual consistirá em recrear a imagem de Deus no homem, destruída pelo pecado, com o auxílio da graça e a força do Espírito Santo.

Este aperfeiçoamento não deve ser um privilégio de um grupo, senão vocação universal, chamada de Deus, a todos os homens.



c) A perfeição na caridade

A santidade cristã se mede pela perfeição na justiça e esta, pela perfeição na caridade. A caridade como forma da vida espiritual, que tem por objecto Deus, a si mesmo e ao próximo. A caridade tem como objecto a si mesmo, num conhecimento do próprio eu, e que é o fundamento da humildade.

Assim afirma Agostinho: “Dois amores fundaram duas cidades, a saber: o amor próprio que é o desperdício de Deus, o terreno; e o amor de Deus que é o desperdício de si mesmo, o celestial. O primeiro se gloria a si mesmo, e o segundo em Deus, porque aquele busca a glória dos homens, e o outro tem por máxima glória a Deus, testemunho da sua consciência”



d) A santidade, projecto divino-humano



A caridade perfeita nunca é absoluta e completa nesta vida, assim como as demais virtudes não são frutos do homem, de seu livre arbítrio, mas sim da graça de Cristo.

Forte foi a discussão de Agostinho contra Pelágio e os seus seguidores, que admitiam a possibilidade de chegar a perfeição mediante a prática das virtudes adquiridas pelo exercício ascético, porque, de contrário, Deus mandaria coisas impossíveis para cumprir. Em consequência, a santidade no homem não é a graça, mas a conquista da vontade. Agostinho tem a experiência de que os projectos humanos, os propósitos valem pouco sem impulso milagroso da graça. Lutou durante anos para impor-se aos instintos carnais e nada conseguiu, e triunfou com a ajuda da graça.

Agostinho condenou Pelágio no XVI Concílio de Cartago (418), confirmado depois pelo papa Zósimo. Com ele, afirmava a iniciativa de Deus em todo o processo, como aconteceu no A. e N. T.

Por outro lado, Agostinho admite a participação do homem, de contrário não seria livre, pois seria um robô nas mãos de Deus.



e) Funcionalidade da oração



A graça de Deus, como dom, se consegue mediante a oração de petição e da humildade. O reconhecimento do nada do homem e a exaltação da misericórdia de Deus.

A oração se faz com o coração, não com os lábios, e consiste num tracto afectivo com Ele. O desejo é o que move a oração cristã: “O teu mesmo desejo é a oração, e o teu contínuo desejo é a tua continua oração” .

A oração cristã tem sentido desde Cristo. Ele “ora em nós, ora nos outros, e é orado por nós. Ora para nós como nosso sacerdote. Ora em nós como nossa cabeça. É orado por nós como nosso Deus” .

Também a luta ascética tem o seu alimento na oração, lugar onde se realiza a natureza humana, o homem com o seu nada e seus desejos, e a super-abundância da graça – dom.



f) Os graus da vida espiritual



A vida espiritual tem graus, porque tem a caridade em que ela se fundamenta. Agostinho distingue 4 graus: “incipiente, proficiente, grande e perfeito” .



Agostinho traçou pela primeira vez a relação existente entre as bem-aventuranças, os dons do Espírito Santo e as petições do Pai Nosso, desenrolando sobre este esquema do itinerário da vida espiritual, esquema que seguirá S. Tomás de Aquino e depois, muitos teóricos da Teologia Espiritual.

Parte do caminho espiritual é a purificação, a noite, a ascese. Agostinho, que esteve por algum tempo no maniqueísmo, sistema dualista, como vimos, teve muito cuidado em purificar o conceito de ascese e a sua funcionalidade na vida espiritual. Não é a matéria, o corpo, que são maus, mas a corrupção da matéria. No ser humano existe uma desordem, se vive uma espécie de guerra civil. “Não arrasta o corpo a alma, mas o corpo é que se corrompe. Logo, a prisão não deve ser o corpo, mas o corpo é que se corrompe” .

A desordem, constitutiva do ser humano, se corrige com a acção da graça e com o exercício de certas virtudes que estabelecem equilíbrio entre o amor devido a Deus e o amor devido as criaturas. Tudo se resolve no amor. O controle das paixões é quando predomina o amor. “As fadigas do amante não pesam; pelo contrário, são motivos de deleite. Por tanto, só interessa ver o que se ama, porque quando se ama, ou não se sente o peso ou se ama senti-lo” .

Finalmente, as últimas etapas da vida espiritual são tratadas desde a perspectiva da contemplação, fruto do dom da sabedoria, e a bem-aventurança de paz, que realiza a união com Deus, por conhecimento e afecto.

A contemplação é uma experiência da presença de Deus no meio de êxtase, como aconteceu com Agostinho em companhia da sua mãe no partir da Hóstia .

Agostinho, por outro lado, não aceita a dicotomia acção-contemplação como algo contraditório, senão como princípios integradores. Dom da contemplação seja a força para a acção e o amor ao próximo. E a acção não destrói a contemplação, senão a necessidade de mais contemplação .



4.2. Dionísio Areopagita (sec. V-VI)



Com Dionísio Areopagita se divulgaram no Ocidente, a partir do século VII uns escritos de teologia e espiritualidade que tiveram enorme influência no Ocidente cristão. Formam o Corpus dionysiacum quatro obras principais: Os nomes divinos, Teologia mística, A hierarquia celestial e a hierarquia eclesiástica.

O autor se apresenta como discípulo do apóstolo Paulo, convertido por ele no Areópago de Atenas (cfr. At 17, 32-34). Não se sabe quem é este misterioso personagem, um dos mais ilustres falsários de todos os tempos (recordara Carta aos Hebreus). Possivelmente escreveu em ambientes sírios mais que coptos, e em torno do ano 500, citado nos textos de Proclo, morto no ano 485, as suas obras são conhecidas, e são citadas com autoridade por monofisitas no sínodo de Constantinopla.

Seja quem for este inteligente neoplatónico cristão, fala numa linguagem parecida à dos grandes autores da escola alexandrina e anteoquena, como Clemente, Orígenes, Evagrio Póntico, Basílio, Gregório Nacianceno e Gregório Nisseno, e, ao mesmo tempo, utiliza uma terminologia nova para expressar o inefável, o absoluto de Deus incognoscível. Seja ou não original, seja ou não místico experimental, o certo é que levou ao terreno da espiritualidade temas estritamente dogmáticas e cultivado por ele pela sua linguagem a mística de todos os tempos. É o mestre de autores medievais, entre S. Tomás, e mestre dos grandes místicos como S. João da Cruz.



Apenas dois temas queremos recordar:



a) Conhecimento de Deus e perfeição cristã



Por detrás do problema do conhecimento de Deus, Dionísio oculta a perfeição do cristianismo. Indaga os limites desse conhecimento, a qualidade, os caminhos e como é que o conhecimento e o amor são as mediações para o encontro com Deus. Encontro que, dentro de uma relação misteriosa, diviniza o homem.

Deus se revelou na Escritura com nomes que descobrem a sua essência (Bem, Beleza, Amor, Verdade, Puder …). Porém estes nomes não esgotam a perfeição de Deus, são meras aproximações, porque Deus transcende o ser e os seres.

O homem pretende atingir a Deus com conhecimento, mediante coisas criadas, os símbolos, as palavras, as ideias.

O pode expressar de modo afirmativo (conhecimento catafático de Deus), ou de modo negativo (conhecimento apofático de Deus).

Toda a afirmação das perfeições de Deus é incorrecta enquanto fundada no conhecimento mediato das criaturas, pelo que atribuímos a Deus tais perfeições em grau imanente, tiradas das imperfeições criadas.

Deus é, em todo caso, O Transcendente. Por isso, nem a terminologia negativa serve para expressar o que Deus é. Nem positivamente, nem negativamente podemos conhecer e expressar o que é Deus. Deus está por cima do positivo e do negativo.

O menos imperfeito é o conhecimento apofático de Deus, por via negativa, por ignorância ou negligência. “O conhecimento mais alto de Deus é o que se tem por meio da ignorância, segundo a união sobrenatural, quando a mente, separando-se de todos os seres e logo incluso de si mesma, se une aos raios super-resplandicentes e desde aquele momento é iluminada, na profundidade inescrutável da sabedoria” .

O conhecimento de Deus, em sentido apofático, se conclui na éxtasis, que supõe o abandono das funções intelectivas (conhecer, imaginar) e das potências (entendimento, imaginação), para situar-se “para além da inteligência” . O éxtasis se realiza e se experimenta no amor, na vontade, mais que no conhecer ou no entendimento . Mais que todo o discurso, que toda a imagem, que toda a afirmação sobre Deus (teologia catafática) ou negação (teologia apofática), está a teologia mística, que é uma experiência que transcende a ambas. É a união com o Uno.



b) As “vias” ou “graus” da vida espiritual



A denominação Teologia Mística e o seu conteúdo tiveram grande impacto na teologia Ocidental desde o Pseudo Dionísio. O mesmo sucedeu com a divisão da vida espiritual em “vias” ou “graus”. Pelo menos desde Orígenes se fala já do tema, como expusemos atrás com S. Agostinho, mas deve ser o Areopagita o ponto de referência obrigatório a partir da Idade Média.

Divide a vida espiritual em três “vias”: purificativa, iluminativa e unitiva, reflectem sua tendência as divisões tripartidas e tem seus paradigmas nas hierarquias celestes: purificadas, iluminadas e aperfeiçoadas

Dionísio parte de um princípio eclesiológico: na hierarquia eclesiástica das três ordens: diáconos, sacerdotes e bispos, que tem três funções: purificar, iluminar e aperfeiçoar ou santificar.

Também admite uma tríade de sujeitos passivos sobre os que exercem essas funções: os diáconos purificam os penitentes-catecúmenos mediante a catequese pré-baptismal e a penitência; os sacerdotes iluminam o povo fiel mediante o baptismo; e os bispos aperfeiçoam (unem com a divindade) os monges com a confirmação e a Eucaristia.



4.3. São Gregório Magno (540-604)



No final do período aparece São Gregório Magno, figura que dominará a área espiritual do Ocidente até S. Bernardo e continuará influenciando também na entrada da Idade Média.

a) Uma pequena referência biográfica



Gregório nasceu em Roma por volta do ano 540. Estudou Direito Civil na sua cidade natal e no ano 572 foi nomeado prefeito da Urbe (presidente do Município). Em 575 a sua vida muda bruscamente. Converte a sua casa do monte Celio num mosteiro e acolhe os monges beneditinos que, fugindo dos ataques dos longobardos no Montecasino, buscam refúgio em Roma. Em nesse mesmo mosteiro, famoso depois com o nome do mosteiro de S. André, inicia a sua vida monástica. Foi ordenado diácono e sacerdote mais tarde. O papa Gelasio II o enviou como legado pontifício (núncio) em Constantinopla (578-585) e aí conheceu S. Leandro de Sivilha. Com a morte do papa em 590, foi eleito Gregório para o substituir. É o primeiro papa monge. Morreu em Roma a 12 de Março de 604. Gregório notabilizou-se como pastor e escritor. Humilde servidor da Igreja, foi o primeiro a usar o termo: “Servus servorum Dei”.





b) Doutrina espiritual

São Gregório não é um teólogo especulativo, mas um pastoralista, um moralista (porém não recompilador de casos morais). É um pedagogo de massas, tanto nas homilias como nos escritos exegéticos. Tem um carácter prático nos seus ensinamentos, a busca sábia da fé; certo carácter experimental da vida cristã, de mais amor que inteligência, amor que é ao mesmo tempo conhecimento ; encorajou a todos, quer por dentro ou por fora dos mosteiros, a tenderem a perfeição. É marcante nele a “religiosidade popular”.



Algumas anotações gerais e uns pontos sintéticos:



1. A Escritura como paradigma



Gregório lê a Escritura como história de salvação, como supremo arquétipo, paradigma de salvação que actua na Igreja e em cada um dos cristãos. O que acontece historicamente na Escritura (salvação) se realiza misticamente na sua Igreja e nos cristãos. O acontecimento do passado se está projectando sempre sobre o futuro. Sentido histórico e profético da Escritura. Assim como, no escrito sagrado houve uma inspiração que fez do texto Palavra de Deus, assim no cristão perfeito existe o Verbo que realiza a perfeição na vida espiritual. A Escritura, a lectio divina, alimento da vida espiritual, se faz operante na caridade e na contemplação.



2. O retorno ao paraíso



O caminho espiritual é considerado por Gregório como “retorno ao paraíso”, que é o tema de fundo nas suas exposições doutrinais.

O modelo é a Sagrada Escritura: desde o Géneses (criação caída) até o Apocalipses (libertação suprema).

O caminho compreende o exercício das virtudes na luta contra os vícios (ascética), a contrição (que compreende a dor dos pecados, temor de Deus para a contemplação das suas grandezas), e termina na contemplação de Deus (mística).

Este desejo de Deus, assim o retorno a paz serena da eternidade, pode ser provocada pela depressão, tristeza e nostalgia.

Gregório se considera mais habitante do céu que do mundo. Tem como seu lema permanente no seu coração: ‘quero ver a Deus’. E é frequente nas suas homilias aludir aos seus ouvintes para que desprezem o mundo presente e se enamorem da vida futura. O tema do desprezo do mundo tem em Gregório um dos seus mais fecundos pregadores, tema fértil da espiritualidade medieval.



3. Os “graus” da vida espiritual



Na ascensão espiritual, prevista em sete graus, influi o Espírito Santo com os seus sete dons. Gregório, interpretando alegoricamente a reconstrução do Templo na cidade de Jerusalém, prevista por Ezequiel (cap. 40), cujos pórticos são sete (40,26) ou oito (40,37) graus, o aplica a vida espiritual, obra do Espírito Santo: “Por sete graus se sobe para a porta, porque pela graça setiforme do Espírito Santo se nos abre a entrada do reino dos céus” . Sua doutrina sobre os sete dons que adornariam o futuro servo de Yahweh (Is 11,1-2), e que Gregório aplica a Cristo, “Nossa Cabeça, ou o seu Corpo, que somos nós”, sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus.

Segundo Gregório há que inverter a ordem na dimensão espiritual: começar por temor de Deus e culminar com a sabedoria. O oitavo grau de que fala também Ezequiel, é interpretado por Gregório como “o prémio da retribuição eterna”

No Espírito Santo e nos seus dons, segundo S. Gregório, está simbolizado pelos dedos de Cristo que meteu na orelha do surdo para fazer-lhe ouvir (cfr. Mc 7,32): “Que significa por dedos do Redentor senão os dons do Espírito Santo…? De um a outro brota o Espírito Santo se chama dedo; logo, meter os dedos nas orelhas é abrir, por meio dos dons do Espírito Santo, na mente do surdo para que obedeça” .

Em Gregório há um primeiro intento de aproximar e unir os dons do Espírito Santo (que são sete) a quatro virtudes cardeais (prudência, temperança, fortaleza e justiça), e, menos saliente, as virtudes teologais. Há demasiado simbolismo, próprio da Idade Média, jogando com os números 3, 4, 7 e 12.



4. Vida “activa” e “contemplação”



O problema da contemplação, da vida activa e contemplativa, são amplamente tratados por Gregório e é um dos capítulos brilhantes da sua espiritualidade.

A solução do clássico binómio acção – contemplação, oração – apostolado, em Gregório é clara: se trata de dois aspectos de amor, ao Deus e ao próximo. Por isso todos são necessários.

Opta por um equilíbrio entre ambas, até porque prevê se inclinaram para uma e outros para outra. “Logo a largura pertence a caridade do próximo, e a altura a inteligência de quem contempla… quando estiver dilatado com o amor do próximo, tanto estará alto o conhecimento de Deus; pois a medida que se delata por amor, mais a inteligência se levanta para o conhecimento” .

Enquanto a vida activa é o exercício das virtudes, e um passo para a contemplação, que vem a ser culminada pela ascese. Também o exercício caritativo, as obras da caridade, são importantes. A alma de Gregório suspira para a contemplação, como um repouso depois da acção, sempre na base do laço de amor.

“A vida contemplativa é manter toda a alma em caridade de Deus e do próximo, mas abster-se de todo acto externo com apenas o desejo de aderir ao criador”

A vida activa foi representada por Lía no A. T., e por Marta no N. T., respectivamente, já desde uma antiga tradição que começou por Orígenes, Agostinho e Casiano.



A contemplação é gradual:

- O 1º grau é o acto do recolhimento da alma sobre si mesma mediante o controle dos sentidos exteriores e interiores.

- O 2º grau é a consideração de si mesma, da sua natureza, como imagem pura de Deus, que causa gozo.

- O 3º grau é a penetração no mistério de Deus, mesmo sem o esgotar. É o limite da contemplação, limite de si mesma .



5. Cristo mediador



O caminho que conduz a alma ao paraíso é Cristo, modelo, mediador, redentor.

Gregório contempla em Cristo as duas naturezas, porém não deixa de ser sintomático que reserva a contemplação no tratado da Divindade aos perfeitos, entre os quais se encontra Paulo (1Cor 2,2), e aos parvuli, os pequenos, na Humanidade de Cristo .

Com maior predilecção vê em Cristo sua Divindade no céu, e actuando nos homens (Corpo místico, a Igreja), seu Espírito, que é quem diviniza o homem, que é a sua Humanidade.



c) Significado de São Gregório na história da espiritualidade

Na situação do seu tempo, pela sua condição de Papa e monge com uma ampla actividade literária, Gregório se converteu num dos símbolos da espiritualidade europeia.

Ele criou a “teologia monástica” que se alimenta da lectio divina contemplada na sociedade e no silêncio dos mosteiros, contribuindo, em certa medida, na separação do povo, do clero e dos monges.

Gregório ensinou no Ocidente que a Igreja está sustentada pela Palavra de Deus, que tem sempre o primado. Desde ela, os ministérios são serviços. O mesmo se proclamou, como Papa, “o servo dos servos”.

Nos Diálogos se iniciou catequista do povo, ensinando-os com linguagem visual, os exemplos, que Deus continua actuando, como no A. T., nos “santos”, não obstante a calamidade dos tempos.

Na sua Regra pastoral expõe que o carisma do serviço e o ensinamento não estão só com os papas, bispos, sacerdotes, estão em todos os membros do povo cristão iluminados pelo o Espírito Santo. Também os leigos são chamados a esta tarefa de pastoral na Igreja.

Os ensinamentos de Gregório sobre o primado da Palavra de Deus na Igreja, se evidenciaram, dando peso a uma Igreja de poder, confundindo-se com a hierarquia.

A Palavra de Deus educa a todo o povo cristão, conduzindo-lhe a uma comunhão eclesial.

A acção de Gregório culmina com a evangelização da Europa mediante o envio dos missionários num momento em que o Ocidente parecia sucumbir ante a evasão dos “bárbaros”. Para todos São Gregório Magno é um homem providencial, um autor génio, um dos construtores da Europa cristã.



4.4. S. Bento (480-548)

Para um significado especial na história do monacato e para uma síntese mais fecunda da espiritualidade na idade Patrística (séculos IV-VII), vamos dedicar um apartado especial a Regra de São Bento de Núrcia.



4.4.1. A pessoa e o marco histórico

Nasceu em Núrcia (Úmbria) na Itália cerca do ano 480; estudou em Roma; começou a praticar vida eremítica em Subiaco, onde reuniu um grupo de discípulos, e passou mais tarde para Montecassimo. Aí fundou um célebre mosteiro e escreveu a regra, cuja difusão lhe valeu o título de patriarca do monaquismo ocidental. Morreu no dia 21 de Março de 547; mas já desde os fins do século VIII, em muitas regiões começou a celebrar-se a sua memória neste dia. O papa Pio XII o declarou “patrono da Europa”, título confirmado pelo Paulo VI, no ano 1964.



4.4.2. Espiritualidade da Regra

A Regra de S. Bento é uma autêntica síntese da espiritualidade do século VI. Consta de 73 capítulos.



a) Sentido da vida em comunidade

A Regra organiza a vida de um cenóbio, daí que a espiritualidade tenha um carácter comunitário. Todavia se nota a ideia de que o monge é um cristão coerente, que toma a sério os compromissos baptismais. Daí que se pode chamar de um “cristianismo monástico”.

A peça chave, não só está na organização material e administrativa do mosteiro, mas também na vida espiritual do monge e da comunidade, é o abade, que é, ao mesmo tempo, pai, mestre, juiz e médico.

O monge deve aceitar em fé, crer, que o abade “está na vez de Cristo”, pelo que o chama pelo mesmo nome de ‘Pai’, aplicando-lhe o título de Abbá, que Cristo utiliza exclusivamente em relação a Deus-Pai (2,3).

Originariamente o abade do mosteiro não era necessariamente o superior, mas sim o monge venerável, que tinha conseguido a perfeição, a apatheia, e que cheio do Espírito Santo, possuía a ciência espiritual e podia discernir os espíritos dos seus irmãos. Tinha, em outras palavras, o carisma da paternidade espiritual .



Por outro lado, o abade se apresentava como vigário de Cristo-Pai, de Cristo-Irmão dos monges que os serve. Esta funcionalidade e preeminência religiosa do abade é a que deve provocar a fé-obediência no monge.



O abade e a comunidade se regem por uma Regra, que vem a ser assim o cânon objectivo que ordena a vida monástica. “Assim pois, em todas as coisas sigam todos a Regra como mestre e nada se afaste dela temerariamente” (3,7).



Das virtudes que articulam a boa marcha da vida comunitária, se pode destacar, da parte do abade, a capacidade de serviço aos irmãos; e da parte dos monges, a obediência (Veja o texto no livro – p. 110).

A comunidade beneditina cria igualdade entre os membros, não há diferença das classes sociais, mas há igualdade nos serviços e ofícios dentro da mesma. “Não haja no mosteiro, aconselha o abade, discriminação de pessoas” (2,12-13).

O monge estende os seus vínculos com o abade e a comunidade mediante a profissão religiosa, precedida por uma larga e exigente aprovação e selecção de candidatos.

A profissão beneditina era um compromisso jurado para cumprir três coisas: a obediência, a perseverança (oferenda perpétua) e o exercício das virtudes monásticas (conversatio morum suorum).

A profissão não se pode considerar como um contracto entre o candidato a monge, e o abade a sua comunidade, mas como uma aliança mística com Cristo, como uma oferta da própria vida.

A perseverança (oferenda perpétua) do monge não está simplesmente na permanência, mas obriga ao monge a tríplice fidelidade: a vida regular, a comunidade e ao mesmo mosteiro.

A obediência vem a ser a virtude mais representativa dos três conselhos evangélicos (castidade, pobreza e obediência), que implicitamente os engloba.

O monge obedece a Escritura e a Tradição, que as vive. Obedece o abade, em vez de Cristo (2,1; 63,13). É como um retorno a Deus. O monge obedece a Cristo, a que serve como Rei, renunciando a sua própria vontade (pról. 3; 5, 7), e obedece como Cristo (5,13; 7,34). Obediência ao superior que admite o diálogo fraterno (68,1-12, 4-5). Obediência também entre os mesmos irmãos (71,1-2; 72,6).

Não existe indício algum na Regra beneditina do domínio despótico do abade sobre os súbitos, a semelhança do senhor feudal com os seus servos, apesar de este ser responsável de toda a actividade do mosteiro.



b) O caminho virtual do monge

1. Vocação

Para discernir as decisões dos pretendentes, S. Bento estabelece uma série de normas, bem severas, antes de uma profissão monástica (cf. cap. 58).

O caminho do “cristão” vivido no mosteiro começa sempre pelo dom especial, uma chamada – vocação por parte de Deus, que se completa com a resposta do homem. Para os chamados quer Bento estabelecer uma “escola de serviço divino” (pról. 45), em que o monge aprende as práticas de ser cristão e as exerce durante a vida. Bento espera que nesta escola não se imponha “nada de áspero, nada de pesado” (prol. 46), e que todo o exercício das virtudes seja “obra de Deus” (pról. 29).

O monge principiante beneditino é um ouvinte da voz de Deus e um respondente com “olhos” mais do que com palavras (cf. pról. 16 e 35).

A resposta à chamada do monge é justificada só por motivações de base: a busca de Deus (58,7). Esta busca de Deus tem que ser interpretada no sentido passivo: busca o monge a Deus porque se sente buscado por Ele. É a opção fundamental, o critério supremo para o discernimento chamada – vocação.



2. Ao serviço de Cristo Rei

O desenrolo da vocação, do caminho cristão, tem uma dimensão cristológica. A vida monástica é uma “militância” no reino e para o reino de Cristo (pról. 3). Ele está presente no mosteiro como autêntico Senhor: no abade (2,2; 63,13); nos enfermos (36,1); nos hóspedes e peregrinos (53,1; 7 e 15); nos pobres, etc.

Um princípio geral que domina a instituição monástica beneditina é a sua espiritualidade: “não antepor nada ao amor de Cristo” (4,21); “nada absolutamente anteponha a Cristo” (72,11). Cristo é o único absoluto, o único que justifica. Pôr a Cristo como Absoluto da sua vida é muito mais do que o seguimento ou imitação. Não encontra sentido esta vida fora d’Ele.

É neste clima sacralizado, em que o monge estabelece um elo com Deus e com Cristo como únicos absolutos existenciais, onde se desenrola a sua vida espiritual como uma milícia, num exercício ascético de virtude e controle dos vícios.



S. Bento não sistematiza, como Dionísio Areopagita ou S. Agostinho, mas coloca conselhos na sua Regra, expondo uma série de códigos de virtudes na qual sobressaem a obediência (cap. 5), o silêncio ou o domínio da língua (cap. 6) e a humildade e os seus graus (cap. 7). O cap. 4 apresenta uma colecção de boas obras.



3. A humildade, caminho do amor

Bento traça uma escala de perfeição fundamentada no exercício da humildade como a ascensão a plenitude de amor, e que tem sido considerado como “uma síntese de toda mística cristã, e não reservado a uns poucos perfeitos, mas sim a todos se abrem as portas: aos débeis, aos pecadores, aos inúteis, aos enfermos, aos desesperados”

É evidente que, quando S. Bento escreve a sua Regra, a ideia do crescimento gradual já existia noutros autores, tais como: Agostinho, Pacómio, Basílio, Jerónimo, Gregório de Nisa, etc. S. Bento fala de 12 graus de humildade (cap. 7) que não são de maneira alguma 12 graus de perfeição, etapas de vida espiritual que se sucedem cronologicamente, de maneira que se possam ver os progressos a passar do 1º ao 2º grau. Mas apenas Bento ressalta a doutrina sobre a humildade, pois nela podemos entender, 1º o senso da humildade (graus), isto é um conhecimento da própria nulidade; a acção de Deus, da sua graça, e o reconhecimento do nada humano. 2º o cristocentrismo da sua doutrina; não se trata só da imitação externa, senão uma experiência paralela a experiência de Cristo, como demonstra o contínuo recurso a S. Escritura, aos textos base referido a kénosis, a obediência, a exaltação de Cristo. 3º Implicitamente a humildade reflecte uma vida teologal de fé, esperança e caridade.



4. Os graus da humildade de S. Bento

O primeiro grau - O homem vive sob o olhar de Deus, tem um santo fervor, tem presente os mandamentos, o castigo e o prémio que merece sua transgressão ou cumprimento. O homem não deve enfrentar a Deus, evitando os pecados e praticando as virtudes, a renúncia a sua própria vontade, repelindo os maus desejos (7,21-24).

Os três graus seguintes situam o cristão, seguindo os passos de Cristo obediente ao Pai até a morte, antes se despojou de si mesmo: proibido de cumprir os seus desejos, obedecendo a um superior e suportar pacientemente as contrariedades da vida (7,31-43).

Os graus quinto, sexto e sétimo aumentam o despojo interior do monge: desconfiança de si mesmo para confiar nos demais, e assim confiar em Deus. Abrir o coração para comunicar os próprios sentimentos, pensamentos, impulsos, paixões ao abade, ao padre espiritual para que ele discirna os distintos espíritos (5º grau). Sentir-se servo inútil e gozar-se do vil e objecto (6º grau). Não só discerni-lo e tê-lo, mas também crê-lo, sentir que é o último e mais vil de todos (7º grau).

Os últimos graus de humildade têm uma referência exterior: o que poderia chamar-se de humildade sociológica, em contraposição a humildade ontológica e interiorizada. Uma vivência espiritual de humilhação diante a Deus, a si mesmo e aos demais, pelo controle do desejo de sobressair, e em contrapartida, de cumprir as Regras e as tradições (8º grau), o controle da língua (9º grau) e a expressão do seu corpo (10º e 11º graus), e atitude de humildade, como o publicano do Evangelho. E por fim fala da acção do Espírito Santo que os leva a um caminho de perfeição e que então “purificam os vícios e os pecados” (7,70 – 12º grau).



c) Ora et labora

É evidente que a fórmula não vem de S. Bento, já era um princípio que existia que reflectia a dupla ocupação do monge desde o início da vida anacorética de S. António. Sabemos que alguns monges com doutrinas heréticas, como por ex. os mesalianos e euchitas repeliam o trabalho manual como indigno para o orante, não aceitando o binómio como normativa para a vida monacal. S. Bento organizou harmoniosamente a oração e o trabalho.



1. A oração

A oração é a obra de Deus (Opus Dei). É a principal actividade do monge beneditino. Por isso encontramos na Regra: “Nada se anteponha a Obra de Deus” (43,3). É mais ampla que o Ofício divino (cap. 8-18) e a recitação dos salmos. Abarca também a oração pessoal, a lectio divina, a meditação sobre a Palavra de Deus.

A relação com Deus (oração) tem que ser feita com espírito interior. Não existe mais que uma forma de oração, que uma relação amorosa com Deus. Seja como for, a oração íntima e pessoal deve ser feita com humildade, reverência, pura devoção, com pureza de coração, deve ser breve e pura.

A persistência repetição da existência da “pureza” para fazer a oração nos leva a contemplação perfeita, último estádio da “vida prática” ou ascética.



2. O trabalho

A oração coral nos leva a ver a vida do monge. S. Bento combina os tempos de trabalho, da oração pessoal e da lectio divina. No monacato pré-beneditino existia a lei do trabalho acompanhado com leitura de textos bíblicos. S. Bento faz a lei do trabalho não como princípio sociológico, mas princípio religioso e moral: “a ociosidade é inimiga da alma” (48,1).



3. A lectio divina

Junto ao trabalho, há outra ocupação, ligada a oração: a lectio divina, leitura da Sagrada Escritura ou de obras de espiritualidade monástica, de edificação. Era o alimento a meditatio, exercício completo: repetição de textos bíblicos aprendidos de memória, penetrando os sentidos, fazendo-os parte da vontade para colocá-los nas obras.



S. Bento harmoniza e combina bem as actividades. Aproximadamente ordena:

- Três horas e meia de liturgia

- Quatro horas para a lectio divina

- Seis horas para o trabalho

- Oito horas para o descanso



4.4.3. Universalidade de São Bento

A Regra beneditina, não se esgota com esta síntese, porém é um esquema suficiente da sua “espiritualidade”. O mais impressionante é que a Regra beneditina foi uma regra comum durante muitos séculos nos mosteiros ocidentais.

São Gregório faz uma descrição da Regra de S. Bento (Diálogos, II, 36), que salienta os elementos seguintes:

- a justa harmonia com que combina todos os elementos da vida monástica;

- a equidade trabalho – oração;

- a sensatez e o sentido comum de organizador, que é fruto de um carisma e de uma inteligência ordenada e prática;

- o equilíbrio entre o trabalho e a oração comum e pessoal;

- as relações interpessoais, tanto do abade com os súbitos tantos desses entre si (de cordialidade, urbanidade, sensatez, de caridade);

- a clausura, o alimento (comida e bebida), o tempo dedicado a sono, o vestir, o asseio pessoal, os exercícios das virtudes, o trato com os enfermos e hóspedes motivada por razões não sociológicas, mas evangélicas;

- o sistema penal baseado na misericórdia;

- Enfim, Bento colocou nos seus conventos ordem, disciplina, equilíbrio, sensatez, cordialidade, humanismo.

Todos os elementos analisados, e outros muito difíceis de sintetizar no papal porque pertencem ao “espírito”, “carisma” do autor, colocando no seu conjunto, é um autêntico tesouro do monacato ocidental. Até hoje em dia a Regra beneditina é um “património” para a espiritualidade universal, na qual todo o especialista em espiritualidade deve fazer referência.



II – A ESPIRITUALIDADE MEDIEVAL – SÉCULOS VIII – XIII

Introdução



O período Idade Média é um pouco confusa, porque não tem um marco cronológico preciso.

Para muitos a Idade Média é uma época marcadamente religiosa: origem das cruzadas da Igreja, a confusão entre o poder civil e eclesiástico,. Entre a religião e as superstições, o período da evolução cultural, etc. Para outros, é um período da plenitude da fé cristã, o momento mais alto do christianitas, e da união da Igreja com o Estado, com predominância do eclesiástico sobre o civil, o espiritual sobre o temporal-material, o triunfo, numa só palavra, “da cidade de Deus sobre a cidade terrena”.

Que é, na realidade, a Idade Média na História da Espiritualidade?

A Idade Média, em primeiro lugar, é uma época de transição, não porque está entre idades ocultas, a Antiga e a Moderna, mas, porque os valores internos que se vivem nos leva a uma nova época.

Como época de transição é uma idade criadora, rica, cheia de idealismo. É um tempo de libertação activa das culturas, das línguas, das raças, das religiões na direcção da Igreja e dos poderes civis.

Podemos dividir esta idade em duas partes: entre os séculos VIII-X, e, XI-XIII. O primeiro período da história religiosa do Ocidente, onde floresceu a época carolingia que veio a terminar com uma queda no século X, marcada pela espiritualidade “popular” e movimentos laicais. no segundo período nota-se uma recuperação da vida espiritual até ao século XIII; por um lado marcada pelo monacato renovado em que encontramos a abadia de Cluny, S. Bernardo e os cistercienses, o eremitismo; e por outro lado, a espiritualidade dos cónegos regulares e das ordens mendicantes.



1. Os séculos VIII – X

1.1. A espiritualidade popular



Introdução



As tendências histeriográficas do momento tendia muito a uma vivência “popular”, mentalidades colectivas. E na grande maioria da sociedade eram analfabetos, e por isso criadores de uma cultura oral, transmitida pela tradição.

Se no âmbito cultural o interesse estava voltado as manifestações culturais, muito mais o religioso e o espiritual, vividos com interioridade ou em manifestações sociais.

Procuramos nesta parte explorar a religiosidade popular como um fenómeno histórico e religioso-espiritual.



A Idade Média é um campo privilegiado enquanto povos inteiros analfabetos criam um simbolismo espiritual entre o cristianismo e o paganismo.



1.1.1. Ambiente sócio-religioso e cultural



É um período da decadência cultural, marcada pela ignorância, que afectava mais ao povo que os pastores, bispos, ou abades. O clero baixo neste período quase todo se encontrava no mundo rural, sob as ordens de um senhor feudal, para servir uma Igreja fundada por ele, a exemplo dos demais servos e colonos que trabalhavam nos seus campos. O clero alto estava voltado ao rei ou imperador, ou então aos burgueses, conselheiros e colaboradores dos reis ou imperadores. Praticamente podemos afirmar que havia uma ignorância generalizada.

É de notar que nesta época temos o S. Gregório Magno (princípio do s. VII) na qual a pregação era da responsabilidade do bispo. Ele próprio foi exemplar como catequista de massas nas festividades principais e comentava para o povo temas espirituais, como por exemplo as homilias sobre Izaquiel e os Evangelhos.

Fora desta excepção de S. Gregório Magno e alguns bispos podemos afirmar o ambiente sócio-religioso e cultural deste período tinha as seguintes características:



- noções pobríssimas do religioso e do cristão;

- uma religião cristã com praxis pagãs, sincritistas e supersticiosas;

- vivência muito superficial e passiva do religioso-cristão, reduzido a ritos externos;

- essa ignorância e passividade conduzia a um individualismo de piedade. O clero estava separado do povo quando celebrava. Os ritos não os celebrava na comunidade, mas o sacerdote em favor da comunidade, como intermediário. O crente executa seus ritos, sua religiosidade a sua maneira, desconectado do que acontece na comunidade.



Estas ideias gerais foram linhas condutoras da espiritualidade da época, confirmadas depois com provas correspondes, como veremos em seguida .



1.1.2. Crenças e práticas populares



Quem se interessa pode aprofundar esta parte com outros manuais, pois temos muito material da “espiritualidade popular” a chamada “alta Idade Média” (s. VIII-XIII) mas nós aqui, nos ocuparemos apenas de alguns pontos, por causa do nosso tempo.



a) Conceitos religiosos fundamentais: “as crenças”



Suposta a ignorância e a simbiose entre o cristianismo e o paganismo, as noções religiosas são pobres e desfalcadas, acomodadas mais com a mentalidade infantil e primitiva dos povos “bárbaros”.

As falsas noções de Deus, procedentes do paganismo foram recolhidas por fontes diversas: penitenciales, cânones de concílios e sínodos (Colecciones canónicas) e obras dos escritores eclesiásticos.

- O Deus dos povos cristãos-bárbaros não é um Deus Pai, senão um senhor terrível, juiz dos homens, protector contra as forças do mal (os demónios) e providente só quando se cumpre o dever, porém castigador quando se rompeu o pacto da fidelidade (do ut des).

- Deus é garante da verdade, defensor da inocência dos que confiam n’Ele, contra a maldade dos homens.

- A fé significa fidelidade mútua; logo se o homem não rompe o compromisso (cumprir com as suas obrigações), Deus não pode rompe-lo, tem que ajudar, nesta vida, o fiel crente. Daí que, quando isto não sucede, o homem se revolta contra Deus, destruindo, por ex., as cruzes depois de uma batalha perdida, Deus se revoltava .

- A graça, não era um dom, mas algo que se tem como mérito boas obras.

- O pecado é romper o pacto de fidelidade e para isso Deus tem que castigá-lo socialmente e tem que ser aliviado com o sacrifício (esmolas, jejuns, peregrinações, orações).



b) Práticas religiosas: Cristo mediador e outras mediações



Nas 1ªs comunidades cristãs Cristo foi considerado como Deus e homem. As 1ªs representações de Cristo em arte são simbólicas: o bom pastor, o cordeiro de Deus.

Com Constantino, Cristo passa a ser também o Pantocrator: Cristo-homem é também Deus.

As orações, que antes, eram dirigidas ao Pai por Jesus Cristo, agora passam a ser feitas directamente a Cristo. Assim, os fiéis vão separando a Eucaristia por um temor reverencial: as missas privadas aumentam para aplacar a Deus; a Igreja, povo de Deus e comunidade dos fiéis, passa a ser uma simples instituição, revestida de poderes divinos, etc.



Começa-se não apenas a se referenciar a Cristo-homem, mediador, acrescentam-se outros, como:



- Virgem Maria (theotokos – contra Nestorio);

- Os anjos que são divididos em categorias (hierarquia celeste): Miguel, Gabriel e Rafael, mas Miguel é que goza de estatuto especial, enquanto guardião do paraíso e intercessor no dia de juízo;

- Os santos intercedem por intermédio das suas virtudes, como modelos a imitar .



c) Outras práticas religiosas



O clima que se encontrava no culto religioso não podia ser de nenhuma maneira um culto interiorizado nem profundo, senão algo externo e ininteligível. Nota-se uma certa invasão da mentalidade do A.T. em que se seguia certas práticas, como por ex., a obrigação de não trabalhar ao domingo (sábado judaico); a unção dos reis; a submissão do povo aos sacerdotes; a pureza legal e sexual (a impureza da mulher depois de dar a luz, a abstenção das relações sexuais dos esposos antes da comunhão, alguns períodos do ano litúrgico).

Começam a aparecer as Missas privadas (s. VII e VIII), intercessões individuais e pessoais, cai o valor comunitário. Se multiplicam as Missas votivas por todas as necessidades. Se multiplicam os altares, e aparecem os altaristas (sacerdotes que servem a um altar feudal cujo estipêndios serviam para assegurar a salvação). Os mosteiros se enriquecem por pedidos de missas.

O povo se distancia da liturgia. O fiel cristão se encontra cada vez mais perdido nas leituras superficiais dos ritos e movimentos que não entende. Se mantém como língua oficial oculta dos mosteiros, o latim, porém o povo bárbaro não entende. Os sacramentos são os ritos externos, tudo é mistério.

A confissão começa a ser privada a um sacerdote, a penitência também podia ser privada. E a Igreja para ajudar os sacerdotes, começa aparecer os penitenciales (o pecado com a sua pena, por ex., quem cometia um homicídio era excomungado por dois anos e quarenta dias, e deveria fazer penitência durante outros dez dias). Por outro lado, no que refere aos pecados veniais poderiam se sanar a pena por estipêndio de Missas, peregrinações, orações, etc.



d) Práticas supersticiosas e mágicas



A religiosidade medieval é quase uma simbiose entre o cristianismo e o paganismo olhando para crenças e práticas supersticiosas que já vimos antes. Muitas dessas práticas continuam até hoje na religiosidade popular. Por exemplo, podemos recordar o culto aos bosques, as pedras, aos astros, ritos sacrificais; celebrações com crenças supersticiosas; crenças nas tempestades.



1. 2. Movimentos laicais populares



Introdução



Entre os s. IX e X surgem alguns movimentos para dar resposta a situação decadente e confusa da vida espiritual, marcada por uma vaga espiritualidade. O clima que se vive é paupérrimo tanto na vida espiritual como no culto.



Os movimentos tem características comuns:



- Um certo evangelismo, deve imitar a pureza da Igreja primitiva.

- O pauperismo, como parte desse evangelismo, imitando a Cristo pobre e negando a avareza, a ambição pelo dinheiro e o conforto da nascente burguesia europeia.

- Liberdade de espírito, que manifesta as vezes pelo anticlericarismo, e anti-hieraquia eclesial.

- Profetismo. Messianismo, induzido pelas visões e fantasias, com pregações escatológicas e milenaristas.



a) A pátria milanesa



Nascida entre classes sociais diferentes, entre o povo e o baixo clero. Buscam uma justiça social mais adequada, lutavam pela reforma do clero, sobretudo contra o clero concubinario. Foi apoiado pela cúria romana, porém caíram na heresia ao negar o valor da sacralidade dos sacerdotes indignos. Foram condenados em 1075.



b) O joaquinismo



Joaquim de Fiore, monge cisterciense e fundador do mosteiro S. João em Fiore, influente personagem entre os s. XII a XIV, encaixa bem o ambiente apocalíptico e escatológico que comove a Europa neste tempo.

Joaquim divide a história em três períodos: o 1º a do Pai (A.T.), o 2º a do Filho (N.T.), e o 3º, a do Espírito Santo (o Evangelho eterno). O primeiro predominaram os casados; o segundo, os clérigos; e no terceiro, os monges.

Prevê uma época espiritualista em que todos os homens, dominados pelo Espírito Santo, teriam um só coração e uma só alma, como a primeira comunidade de Jerusalém.



c) Os fraticelli



São seguidores de S. Francisco. Ao morrer S. Francisco, a Ordem se divide, os que seguem textualmente Francisco, sobretudo na pobreza estrita e aqueles que quiseram ler a sua vida como ensino da vida espiritual na pobreza do espírito. Os 1ºs foram condenados pelo papa João XXII como hereges.



d) Valdenses ou pobres de Lyon

Pedro Valdés, rico mercador, renunciou a sua fortuna para dá-lo aos pobres e se dedicou a pregar a um grupo dos seus seguidores, tendo como tónica, a obrigação de todo o cristão de pregar o Evangelho e a invalidez dos sacramentos administrados por sacerdotes indignos.



e) Pobres de Lombardia



Seita paralela aos valdenses da França, a quem o papa Alexandre III proibiu de pregar por ser leigo sem permissão dos sacerdotes ou bispos.



f) Os cátaros ou albigenses



É a mais importante de todas as seitas ou movimentos. A mais organizada, com pretensões de fundar uma Igreja paralela a Igreja cristã. Foi muito popular porque assegurava a salvação eterna fácil aos seus adeptos. Acusava os abusos da alta hierarquia, bem vista por alta burguesia porque favorecia suas ambições sobre os bens eclesiásticos.

De origem obscuro, se calhar, dos antigos gnósticos. Admitem o dualismo radical como os maniqueos. A matéria (o corpo) é mau, por isso a redenção, mediante Cristo, consiste em libertar o homem da matéria. Não há ressurreição, senão uma transmigração das almas.

Admitem na classe dos seus seguidores: os puros e os imperfeitos. Os primeiros observam uma moral muito rigorosa que tende a libertar o crente da matéria: jejuns frequentes, vegetarianos (porque nos animais residem as almas das pessoas que estão expiando os seus pecados).

Os puros formavam uma espécie de casta monástica, que se assumia mediante um rito iniciático que perdoava os pecados e nesta ocasião se comprometiam em cumprir os preceitos da casta.

Foi condenada na pregação de S. Domingos e combatida pelo papa Alexandre III e Inoscêncio III, de modo que no final do s. XIII desapareceram.



g) Movimentos messiânicos e proféticos



São abundantes neste período os profetas ou messias que se crêem encarnados por Cristo e que o povo os segue como o seu libertador, por ex., Eudes d’Etoile, em Bretanha francesa; Tanchelmo, nas regiões de Bélgica e Holanda.

É um ambiente de fanatismo religioso, de messianismo profético.



2. Os séculos XI – XIII

2.1. O monacato renovado



Introdução

A vida da Igreja, incluindo a sua espiritualidade sofre modificações, sobe e baixa da sua vitalidade interna. As causas são por vezes conhecidas, as vezes incontroladas por acumulação progressiva e crescente de confluências.

No capítulo anterior falamos da religiosidade popular, neste queremos a vida espiritual de um grupo qualificado, os monges.

Falar do monacato renovado é falar do século de ouro do pontificado (IX - X), como veremos a seguir.

Este é o marco de fundo na qual se deve ler a espiritualidade dos “últimos séculos”.



2.1.1. S. José de Cluny

O nascimento da abadia de Cluny é algo um pouco que foge as regras. Ora vejamos: Fundada por um duque Guillermo de Aquitania no 910 nos bosques de Borgona (França), isento da jurisdição dos bispos e dependendo directamente do Papa num momento em que o pontificado está nas mãos das poderosas famílias romanas. O mais assombroso é que, nascendo num século de forte predomínio feudal em que os senhores são donos de abadias e de episcopados, Cluny é independente desta tutela e são os mesmos que colaboram para estender a reforma do monacato na Europa .

Cluny nasceu duma forma esplendida, confirmada pela santidade dos seus abades, a destacar: S. Odón (926-942), S. Mayolo (954-994), S. Odilón (994-1049), S. Hugo Magno (1049-1109) e Pedro, o Venerável (1122-1156).

Neste ambientes cluniacienses se forjam os reformadores que lutaram contra as pragas da Igreja:

- a investidura dos abades e bispos por leigos com a entrega dos símbolos, o báculo e o anel;

- a simonia, ou compra e venda de ofícios e benefícios eclesiásticos;

- o nicolaitismo, ou a clerogamia, o incumprimento do celibato entre o clero e os monges.

Na “história da espiritualidade” nos interessa mais a vida interna, a vivência cristã dentro do mosteiro.

A espiritualidade de Cluny é uma variação sobre a Regra de S. Bento, de que os cluniacenses são herdeiros.

S. Odón (+ 942) deu novo impulso a vida espiritual nos mosteiros. Alterou o equilíbrio de S. Bento de Nursia entre ora et labora, potenciando a oração coral , a celebração litúrgica com maior solenidade, a oração pessoal e a lectio divina.

Em contra partida sofre o trabalho manual. Os cluniacenses se acham mais orantes e menos trabalhadores; mais enclaustrados, separados do mundo e silenciosos para favorecer o ritmo de oração.

Os cluniacenses não são grandes escritores, porém favoreciam as artes (escultura, vidreiras, arquitectura romântica) e são exemplares na transcrição de antigos códex .

“Este mosteiro de Cluny, escrevia em 1080 o Papa Gregório VII, provavelmente monge cluniacense, ultrapassa os demais mosteiros ultramontanos no serviço de Deus e em favor espiritual”



2.1.2. S. Bernardo (1091-1153)

S. Bernardo, considerado como “o último Padre da Igreja”, “o profeta do Ocidente”, “o doutor melífluo”. Homem talentoso, místico, organizador genial, pregador popular cheio de decursos retóricos, de fantasia, de génio, suscitou na Europa o desejo da reforma. Escritor combativo, controverso e polemista em várias frentes; monge e fundador de mosteiros, teólogo, mas, antes de tudo, padre de monges e mestre espiritual. Nasceu em Borgonha (Espanha).

Bernardo de Fonaines ingressou no mosteiro cisterciense em 1112. É de salientar que este mosteiro foi fundado por Roberto Molesmes em Citeaux, a cinco km de Dijon, em 1098, um dissidente beneditino. Sucedido por S. Alberto (+ 1134) que redigiu os primeiros Estatutos; porém foi o inglês Esteban Harding (+ 1134) que deu a forma definitiva com a Charta charitatis e as Consuetudines.

Em 1115 Bernardo fundou o mosteiro de Clairvaux (Claraval), da qual seria abade, e por isso será conhecido com o nome de Bernardo de Claraval. A sua morte em 1153 a Ordem cisterciense contava com 343 mosteiros, dos quais filiais de Claraval 160, os que tinham sido fundados por S. Bernardo foram 68.



a) Espiritualidade cisterciense

Se fundamenta numa reforma dos abusos dos cluniacienses e imposição de um tom de rigor a regra de S. Bento. O Císter dá muita importância o isolamento, a segregação do mundo, potenciando a solidão, a clausura, o silêncio, abandonando todo o cuidado das almas.

Não são grandes latifundiários, senão pequenos proprietários que trabalham seus próprios campos. Dão grande valor a pobreza individual e colectiva que se manifesta no culto, nos edifícios sem muitas decorações; a austeridade de vida na comida e no vestir, sem exclusão da oração, da celebração litúrgica e da lectio divina. Não excluem o trabalho intelectual. A contemplação está na busca de Deus.







b) Espiritualidade de S. Bernardo



Introdução

S. Bernardo segue a linha dos Padres, tanto na espiritualidade como na inovação. Em teologia é um discípulo; em espiritualidade, um mestre que põe a teologia a serviço da vida espiritual.

Bernardo é, mais do que teólogo, um místico, e como tal, homem da experiência de Deus. É um santo que ensina o seu “caminho”. E dizer ainda que conhece e sabe por experiência mística a doença do vício de todos os míticos: a falta de sistematização, a inorganicidade do seu sistema.

Bernardo é antes de tudo um pregador de monges, também escrevendo. É um padre-mestre como abade do seu mosteiro que utiliza a Escritura, a história do seu tempo, como ponto de arranque do comentário, que vem a ser circunstancial. As ideias se repetem em circunstâncias parecidas formando assim o itinerário da vida espiritual.



I. O homem imagem e semelhança de Deus

O homem, originariamente uno e simples, criado a imagem e semelhança de Deus, se duplica no bem e na maldade. A imagem de Deus se corrompe, não se destroe; a semelhança se perde com o pecado, porém pode reconstruir-se com a conversão, o arrependimento e a união amorosa com o Verbo

O pecado é também o afastamento de Deus, a escravidão de si mesmo. A libertação se realiza no encontro consigo mesmo e na busca da semelhança com Deus: “Sou livre porque sou semelhante a Deus; sou miserável porque sou contrário a Deus”

Bernardo insiste neste acesso do coração do homem seguindo as palavras de Isaías 46,8

No ano 1139 Bernardo falou aos professores e estudantes da universidade de Paris na abadia de S. Dinis e dizia: “A conversão das almas não obra dos homens, mas sim da Palavra de Deus” . Porém, é necessário ouvir a voz interior da intimidade .



II. Graça e liberdade

A perfeição humana exige um planeamento prévio: a relação entre a graça de Deus e a liberdade ou o livre arbítrio do homem. Bernardo coloca o problema da vontade de Deus, que pode atrair o homem de diferentes maneiras:

- por força (conversão do homem de modo improviso)

- por temor

- por desejo de vida, sobre toda a vida externa

- por amor ( a Encarnação e Paixão de Cristo)

Em todo o caso a perfeição requere uma doação por parte de Deus, porém também a resposta do homem motivada por distintas opções que Deus o apresenta.



III. Graus de humildade e a soberbia

Suposto o jogo das forças graça-liberdade, o homem começa a andar no caminho da perfeição. Das opções que se apresentam ao homem, o de humildade-verdade que conduz ao amor de Deus é o desprezo de si mesmo, o de soberbia-mentira, que conduz o amor de si mesmo ao desprezo de Deus.

S. Bernardo traçou amplamente o caminho de humildade e da soberbia num tratado especial, Sobre os graus da humildade e da soberbia.

Ele coloca, como S. Bento, 12 graus da soberbia, que provém da mentira e desamor: 1º- vã curiosidade dos sentidos; 2º - largueza do espírito; 3º - alegria sem fundamento; 4º - vaidade no falar; 5º -auto-afirmação e vanglória; 6º - arrogância no crer-se mais que os outros; 7º - presunção para intrometer-se em tudo; 8º - executa os próprios pecados; 9º - reconhecimento fingido dos mesmos; 10º - rebelião contra o mestre; 11º - liberdade de pecar e; 12 º - costume de pecar.

A humildade é a ascensão, superação da soberbia.

Olhando para os doze graus de humildade, que tem manifestações sociológicas, porém também tem uma relação ontológica, quando a identifica com a verdade, com o próprio conhecimento do que é a realidade.

“A humildade poderia definir-se assim: é uma virtude que incita o homem a menosprezar-se ante a clara luz do seu próprio conhecimento. Subindo estes doze graus de humildade, se alcança a verdade”

A humildade-verdade nos obriga a ver as coisas como são: as de Deus em relação com os homens, as próprias e as dos demais.



IV. Os graus de amor

A humildade tem um complemento no amor-caridade. Outro princípio básico da espiritualidade bernardina. Também aqui Bernardo descreve uma escala de amores desde o imperfeito até o amor esponsal. O amor, mais que dom de Deus é Deus mesmo, é o princípio e meta da vida cristã, termómetro para medir a temperatura espiritual da alma. Senão o caminho de retorno a Deus, da busca da semelhança.

Em 1125 escreveu S. Bernardo uma larga carta a Guigo, santo abade de Gran Caruja, e aos monges ai residentes, em que sintetizava os graus da perfeição em quatro graus de amor:

1º - o amor carnal, amor egoísta, amor próprio, “por qual o homem se ama a si mesmo ante que a nenhuma outra coisa” (n. 23). O homem cerrado em si mesmo não podia amar a Deus e muito menos ao próximo, porque “para que o amor ao próximo seja perfeito, é necessário que nasça de Deus, e que seja a sua causa” (n. 25).

2º - É o amor servil e temeroso. “O homem ama já a Deus, mas para si mesmo e não para Ele” (n. 26).

3º - É o amor filial, como uma devolução de amor. “O cristão ama a Deus por Ele mesmo” (n. 26).

4º - É o amor místico, “em que o homem só si ama a si mesmo por Deus” (n. 27). É o amor que Deus infunde no coração humano, mas está além das suas fronteiras, e das suas possibilidades. “Esta graça que procede do poder divino e não do esforço humano” (n. 29). Amor gratuito em que se realiza a união transformadora.

A Carta 11 e o Tratado sobre o amor a Deus tem um complemento nos comentários do Cantar dos Cantares, 86 sermões que desenrola a união progressiva da alma com o Verbo, convertendo-se em verdadeira esposa transformada em Cristo-Verbo mediante o amor. É neste clima amoroso entre esposo (Cristo) e esposa (a alma) o amor é de conhecimento.

No tratado Sobre a soberbia e a humildade a união é obra das tres divinas pessoas, da Trindade. De sua união com o Verbo nasce a humildade; de sua união com o Espírito nasce a caridade; a perfeição se consuma na união esponsal com o Pai. A união máxima se desenrola no éxtasis, em que a alma sobe de si mesma, se adormecem os sentidos e se sai de si mesmo



V. O apostolado plenitude do amor

Para Bernardo buscando o equilíbrio das forças entre a acção e a contemplação, entre a infusão (vida teologal como dons infusos) e a efusão (carismas para o apostolado e a doação aos demais), como operações do Espírito Santo.

A ideia básica de S. Bernardo é de que o cristão recebe as classes de graças: umas para si, e outras para a salvação do próximo. O equilíbrio se faz na oração-contemplação geradora de amor-caridade para dar abundantemente ao próximo (n. 6).

Assim resume os passos da santidade-maturidade cristã necessários para o apóstolo: “Devemos 1º ter abnegação; logo, devoção; depois, trabalho de penitência; em 4º lugar, as obras de piedade; em 5º lugar, a frequência da oração; em 6º lugar, a quietude de contemplação; e por fim, a plenitude de caridade” (n. 6).



VI. A humildade de Cristo

S. Bernardo coloca também na sua espiritualidade a devoção a Cristo Homem, a Humanidade de Cristo, porém sem cair no chamado jesulatria, a excessiva divinização de Cristo.

Bernardo se enamora de Cristo nos seus mistérios de Encarnação, Nascimento e Paixão, e torna-se objecto de meditação-contemplação. Encaixará a nova devoção na sua “mística nupcial”, também o matrimónio místico que não realiza com a Humanidade de Cristo, caminha para a divindade, mas com o Verbo-Filho de Deus. A humanidade de Cristo é o modelo de virtudes .



VII. Devoção a Maria

Junto a Cristo Deus-Homem está a colocação dos mediadores, os anjos e os santos. E sobretudo, de Maria.

Bernardo é um entusiasta defensor dos previlégios de Maria, sua função corredentora, modelo de virtudes a imitar. Maria é a “estrela do mar”, como o seu mesmo nome significa.



2.1.3. A cartuxa e o eremitismo



Introdução

Os séculos XI e XII são marcados fortemente pelo eremitismo. Nem podemos colocar todas as razões na decadência da vida monástica, porque nesses séculos a reforma cluniacense está em marcha, aumenta o prestígio dos cistercienses. É mais um fruto do movimento geral das reformas, sentida pelos espíritos mais nobres da Europa, que conduz ao desprezo do mundo (escatologismo), o sentir da transitoriedade da vida, e desejo da separação dos próprios e alheios pecados mediante a solidão, a oração e a ascese pessoal. Movimento aparentemente racionaria e evolutivo, mas no fundo, criativo.



a) Várias experiências

O movimento eremítico é variado neste tempo, desde solitários individuais, que as vezes se fazem de pregadores ambulantes ad tempus, reclusos, estes fazem cenobítico.

Tem como a sua origem o centro de Itália, S. Nilo (+ 1105), que organiza uma série de mosteiros-eremitórios ao estilo grego-oriental. O nome mais famoso é do S. Romualdo (+ 1027), que funda o celebre mosteiro de Camaldoli, na zona de Florencia, donde tomou a ordem dos camaldulenses. O mais famoso camaldulense é S. Pedro Damiani (1007-1072), austero reformador, como Rumualdo, pregador contra os vícios da época, autor espiritual chave para entender a decadência do s. XI.



b) A Cartuxa

A experiência eremítica mais consistente e permanente destes séculos foi iniciada por S. Bruno (+ 1101), nascido em Colónia, director da escola episcopal de Reims e chanceler da diocese. Instigado das intrigas curiais (estamos na época em que simonia ou compra-venda de ofícios-benefícios eclesiásticos é uma praga), se retira para a solidão. Depois de várias experiências monásticas, iniciou com seis companheiros a experiência da solidão absoluta em Grenoble, que mais tarde vaio a ser conhecida por Grande Chartreuse. Era no ano 1084. Nascia assim uma das experiências religiosas mais prestigiosas do Ocidente.

De S. Bruno se conservam apenas as suas cartas e uma profissão de fé. Para reconstruir a espiritualidade dos cartuxos temos que recorrer as Constituições, escritas pelo quinto abade do Grande Cartuxo, Guido I, entre 1121-1127. Na qual encontramos as seguintes características:

- A vida do cartuxo é uma sábia combinação entre o eremitismo individualista e o cenobitismo gregário. O cartuxo tem a sua cela pessoal no centro da sua vida, de que se afasta temporariamente para a oração comunitária e para o trabalho colectivo no campo. Sua cela é, na realidade, oratório, lugar de descanso e de repouso, cozinha e refeitório, e tem também um pequeno jardim e horta.

- Os mosteiros estão situados em lugares “desertos”, longe das cidades e dos povos. Vida solitária no verdadeiro sentido da palavra: afastados fisicamente do mundo, e vivendo independente no mosteiro. Esta solidão leva consigo o silêncio, quebrado somente na recreação dos domingos e nalguma ocasião durante a semana para o recreio comum. Somente nos domingos e dias festivos comem em comum. Aos demais dias nas suas próprias celas.

- O silêncio e a separação do mundo se justificam só pela dedicação exclusiva a vida contemplativa: el vacari soli Deo. A oração pessoal, lectio divina, exercícios que chamam a vida contemplativa. “Nossa principal ocupação e projecto, dizem as Constituições, consistem em guardar o silêncio e solidão na cela” (14,5).

- O retiro, a solidão e o silêncio é tão rigoroso que nem querem ser molestados nem por um hóspede nem pelos pobres. Tudo se engloba na contemplação, no trabalho com Deus, e o cartuxo não quer ser molestado por nada por nada. .

- A simplicidade e a pobreza se manifestam na vida da Cartuxa. Simplicidade na liturgia, que é recitada em comum só na Matinas e nas Laudes nas manhãs e a tarde Vésperas. Simplicidade e austeridade na comida, na exclusão de materiais preciosos nos edifícios, no culto, etc. (n. 78). Anonimato na vida e na actividade intelectual. Copiar e escrever livros é uma função específica do “apostolado”, enquanto esses livros eram causas para muitos para que abandonem os seus pecados e aderissem a fé católica (cap. 28,3-4).

- O trabalho manual é também obrigatório, mas santificado pela oração em forma de jaculatórias (29,3). O cartuxo tem o encargo de trabalho pastoral e vive na clausura rigorosa.



2.1.4. Principais autores do monaquismo renovado



a) Cluniacenses

- Juan de Fécamp (+ 1076) – autor pouco conhecido, da abadia de Fécamp em Noramandia, cujas obras se difundiram entre as escolas de S. Agostinho e outros autores. As obras célebres foram suas Meditações e a Confessio Theologica.



b) Cistercienses

- Guillermo de S. Thierry (+ 1148), grande amigo de S. Bernardo. Temos alguns das suas obras: Epistola ad fratres de monte Dei (sobre a oração), dirigida aos cartuxos. De natura corporis et animae (três estágios da vida espiritual: animal, racional, espiritual). De natura et dignitate amoris, etc.

- Aelredo de Rievaulx (+ 1167), que escreve uma obra famosa: De spiritali amicitia, sobre a amizade espiritual.

- Isaac de Stella, Gilberto de Hoylan, etc.



c) Cartuxos

A Cartuxa produziu grandes escritores e são basilares no estudo da espiritualidade Ocidental. Eles aproveitavam as suas celas para contemplar, para copiar e para escrever livros próprios.

- Guigo I – escreveu as Meditações, em forma de pensamentos, matéria para meditar. Também escreveu as Constituições, etc.

- Guigo II (+ 1193) – Scala claustralium, atribuído a S. Bernardo, e também esteve nas Obras de S. Agostinho com o título de Scala paradisi. Estas breves páginas pousam o primeiro tratado sobre o método da oração mental, que distingue quatro estágios: leccion, meditacion, oracion y contemplacion.

- Adán Scot (+ 1213) – De quadripartito exercitio cellae, elogio da solidão, um paraíso que tem quatro rios, que são quatro exercícios do monge: leccion espiritual, oracion, meditacion e trabalho.

- Hugo de Balma (+ finais do século XIII) – Theologia mystica ou De triplici via, que foi atribuido a S. Buaventura.

- Ludulfo de Sajonia (+ 1377) – Vita Christi, muito lida na Idade Media e Moderna. E Outros.



2.2. A espiritualidade dos cónegos regulares e das ordens mendicantes.



Introdução

Os séculos XII e XIII no panorama económico, social, político e cultural de Europa sofrem modificações qualitativas que incidem no religioso, criando uma “nova espiritualidade”.



Se os séculos VI-XII são “séculos monásticos”, a partir do século XIII são séculos “escolásticos”. A teologia “monástica” era uma reflexão meditada sobre a Sagrada Escritura; o dogma se aprovava pelas “autoridades”, tanto para o texto sagrado, interpretada pelos Padres e escritores, ao histórico literal até o alegórico. A teologia era uma vida mais que uma ciência, era “espiritualidade”. O teólogo era, ao mesmo tempo, um “espiritualista”.

No s. XIII nasce a teologia como ciência, a “sacra doutrina” elaboração racional e sistemática sobre os conteúdos da revelação.

No s. XII verifica-se a crise entre os teólogos e os espiritualistas, entre a teologia “monástica” e a teologia “escolástica”, que gerará um divórcio irreversível entre a teologia dogmática e a teologia espiritual, e que culminará no s. XV; primeiro é que o espiritual nega aos “teólogos”; e depois será o “teólogo” que desconfia do “espiritual” e do místico.

Olhando um pouco sobre o estado social daquela época, podemos notar, o crescimento demográfico, a imigração dos ambientes rurais para se estabelecerem nos ambientes urbanos, se gera assim uma nova economia fundamentada no comércio e na industria, e proporciona uma nova classe social: a burguesia (habitantes dos burgos ou cidades). O sistema feudal se desmorona. Nascem as cidades, as vilas novas e vilas francas independentes do poder civil e eclesiástico. Surge uma nova mentalidade, nova economia e cultura, a ânsia de viver e de gozar dos bens temporais. O “burguês”, geralmente inculto, deseja pôr-se em dia e frequenta as aulas das Universidades, que nascem naquele tempo como uma necessidade de ampliar os redutos conhecimentos das escolas monacais e episcopais. A teologia não será a única ciência, terá de competir com a filosofia e com o direito.

Simultaneamente, e como protesto contra o enriquecimento da Igreja e dos novos burgueses, surgem os movimentos pauperísticos e anticlericais. Neste clima e com este tom de fundo surgem novas formas de vida religiosa: os cónegos regulares e as ordens mendicantes.



2.2.1. Os cónegos regulares

Um dos efeitos benéficos da “reforma gregoriana” foi a reforma do clero. Os Papas Nicólas II (1059) e Alexandre II (1063) exigiram, em sínodos romanos, a vida comum dos sacerdotes, incluindo o celibato, sem obrigação de ter os bens em comum. Era o primeiro passo.

O segundo se deu com S. Norberto de Xanten (Renania), que depois de uma vida frustrada na corte de Enrique V, renuncio a sua capelania de Xanten, fundou, com três companheiros, a Ordem de Premontré (Premonstratenses) no norte da França, vivendo na castidade, obediência e pobreza absoluta, sob a Regra de S. Agostinho. Seu apostolado se desenrolou nas paróquias, favorecendo ao mesmo tempo a vida contemplativa dos seus membros e a reforma do clero, a devoção a Eucaristia e a Virgem Maria.

Das congregações dos cónegos regulares existem muitas na Europa, porém descreveremos apenas a de S. Victor, fundada em 1110 por Guilherme de Champeaux, num dos mosteiros de Paris, dedicado ao mártir S. Victor de Marselha.

A abadia de S. Victor é o centro luminoso da vida espiritual, uma cátedra altíssima do nascente Escolástico, lugar privilegiado para a união da teologia e a mística no tempo em que começavam a divorciar-se. Nos Vitorianos, sobretudo Hugo e Ricardo, a espiritualidade tem o apoio da ciência teológica, e esta se ilumina com a contemplação amorosa do teólogo.



a) Hugo de S. Victor (+ 1141)

O mais sábio e universal em conhecimentos de toda a Escola. Natural de Sajonia, entrou muito jovem no mosteiro de S. Victor. Em 1133 dirigia os estudos do mosteiro donde ensinava com grande êxito. Segundo S. Boaventura, Hugo “é o mais perfeito síntese de Agostinho, Gregório e Bernardo”.

Para Hugo a meta da perfeição está na contemplação, termo último na busca da verdade, cume da especulação filosófica e teológica. Os primeiros estágios desta busca são a leitura sobre a Sagrada Escritura e a meditação, que é uma reflexão sobre as criaturas, as Escrituras, as misericórdias de Deus e a miséria humana. A meditação termina na oração, que se faz pela pregação e petição (De meditando y De modo orandi).

O último grau do caminho espiritual é a contemplação, porém não a especulativa e imperfeita, senão a que Deus infunde na alma como plenitude de amor, que faz desprezar os bens da terra (De vanitate mundi), e se consuma na união íntima com o Esposo Cristo .



b) Ricardo de S. Victor (+ 1173)

É místico da Escola, um dos grandes teóricos da mística medieval. Nascido na Escócia, foi discípulo de Hugo na abadia de S. Victor e chegou a ser prior desde 1162 até a sua morte.

Se move, como Hugo, dentro das coordenadas da escola: a meta é a contemplação amorosa, que Ricardo estudava mais profundamente distinguido-os dos objectos, os graus, assim como os graus da caridade que se exerciam em cada grau da contemplação.

Escreveu um primeiro livro, o Benjamim Menor, como propedêutica a contemplação mediante o controle das paixões e a aquisição das virtudes. O subtítulo é significativo: “Da preparação da alma para a contemplação”.

O livro propriamente místico é o Benjamim Maior, ou “A graça da contemplação”. Precedem a contemplação cogitatio, ou a reflexão sobre os objectos exteriores a meditacio, o conhecimento dos valores que estão dentro de nós. A contemplação seria sair de si mesma para unir-se com Deus. O último grau da contemplação é o último grau da perfeição, a que o religioso é chamado.

Distingue também os objectos da contemplação: as coisas corporais, as coisas racionais, as invisíveis de Deus reflectido no visível do mundo, as essências invisíveis e incorpóreas, Deus conhecido pela fé e Deus conhecido no mistério da Trindade. E as formas de contemplação, humana ou adquirida, humana-divina e divina ou infusa.

Completa a altíssima visão da vida espiritual com o trabalho, que combina as distintas formas de contemplação e os objectos contemplados. São graus da experiência mística:

- O 1º - Deus visita a alma e esta a deseja excessivamente.

- O 2º -- recebe a visita do esposo e goza da sua presença: corresponde a contemplação mista. O 3 º - vem o extasis (mentis excessus), é o momento da união com o Esposo. Seria o matrimónio espiritual.

- O 4º grau - o mesmo matrimónio espiritual enquanto produz frutos, a fecundidade da esposa. A união afectiva se faz efectiva. A alma pensa só em imitar a Cristo no céu par a salvação das almas. Estes últimos graus de amor correspondem a contemplação infusa ou propriamente, mística.



2.2.2. Características comuns das ordens “mendicantes”

As Ordens mendicantes nascem como resposta alternativa das Ordens monásticas, na mesma linha dos leigos reformadores.



Vejamos suas características:

a) Pobreza individual e colectiva

Os monges observavam a pobreza pessoal-individual, não a colectiva. Apesar das reformas nasciam um claro ideal de pobreza, pouco a pouco as abadias se converteram em instituições poderosas socialmente e economicamente.

Entre os mendicantes surgem novidades. Se impõe a vida de pobreza com cloro matiz cristológico e evangélico: imitar a Cristo e estar livre para o apostolado. Por exemplo, para os franciscanos, tomaram a vida pobre como um ideal em si mesmo, como um fim. Mas para os dominicanos a consideravam como um meio para o apostolado (ex., a vida evangélica diante dos evangelizadores). Seja por um motivo ou por outro, as Ordens mendicantes impuseram a mendicidade para poder subsistir e dedicar-se mais livremente a pregação, coisa não prevista entre os monges e proibida aos clérigos.





b) A actividade apostólica

Os mendicantes nascem para servir ao povo como pregadores e catequistas, para ajudar-lhes em suas necessidades espirituais. Se bem que é verdade que algumas Ordens nas suas origens, por exemplo os franciscanos, são uma agrupação de irmãos leigos, pregadores itinerantes, pouco a pouco todos os mendicantes se clecarizaram; com uma colaboração no serviço da Igreja que estava desfalcada: a pregação.

Isso fazia com que construíssem conventos nas cidades (ao contrário que os mosteiros); tivessem uma preparação cultual adequada (ingresso nas Universidades), e as disputas com o clero secular (bispos e párocos) por problemas de competências, aumentadas pela extensão da jurisdição episcopal.

Pouco a pouco adquirem estabilidade, com o qual a hierarquia podia controlar contra outros grupos laicos que se tinha constituído anarquicamente em pregadores ambulantes anticlericais e anti-hieráquicos.



c) A fraternidade

Unido a vivência da pobreza está o sentido da fraternidade que criavam os membros das novas Ordens: todos se chamavam “irmãos-frates-frade”. Desaparecem as classes sociais, a praxis que se mantinham em algumas abadias medievais, fundamentadas nas origens familiares ou nas diferenças económicas ou cultuais.



d) A itinerância e a estabilidade

O monacato do s. X-XII defende a estabilidade do monge, quebrando a tradição monástica do peregrinatio pro Christo (uma forma penitencial).

Os Mendicantes concordaram a vida de estabilidade e a experiência comunitária com a itinerância exigidas pela actividade pastoral, a pregação, ou pela mendicidade. Com zelo querem imitar o antigo modelo da comunidade apostólica, nascida de uma releitura do N. T. O movimento do mendicantismo, como fenómeno urbano, sugere a ideia da fuga mundi e a encarnação para a fundação da Cidade de Deus na terra.

Em resumo, os mendicantes são a síntese de todas as experiências anteriores, tanto do monacato clássico, como dos clérigos regulares e os laicos pregadores itinerantes. Depois de Bonifácio VIII (+ 1303), as ordens mendicantes são quatro: franciscanos, dominicanos, carmelitas e agostinianos . Segundo o actual Anuário Pontifício são 17 Ordens mendicantes, algumas são “Reformadas” do antigo tronco.



3. Os séculos XIV - XVII – Idade das Reformas



Introdução

Olhando para os séculos II-XIII são séculos “normativos” isto é criadores da espiritualidade, embora entre os séculos haja elementos diferentes. Agora a situação é outra: a espiral que gira sobre si mesma. Amadureceu o núcleo primitivo, desenvolveu-se, criou as suas bases. Assim temos autores, Escolas, tendências e vida do povo.

O s. XIV se abre com a proclamação do “Ano Santo”, o jubileu do ano 1300, com o papa Bonifácio VIII, e essa praxis continua em vigor até aos nossos dias. Mas logo a vida espiritual-religiosa conhece nova crise.

A morte de Bonifácio VIII (1303) se inicia transformações substanciais: o “desterro” do novo papa a Avignon (1305-1378), o cisma do Ocidente (1378-1447), a peste negra (1348), o nascimento do espírito laicista e, portanto, a queda da concepção sacra da autoridade da Igreja, o enfeudamento secular e pagão do papado durante o renascimento (1441-1517). Culmina com as reformas de Lutero (1517), Calvino e Enrique VIII. Se requeriu assim o Concílio de Trento para restabelecer a unidade, mas já neste período se consumava a existência de diferentes Igrejas, teologias e espiritualidade. A paz de Wesfalia em 1648 confirma juridicamente a divisão sócio-religiosa de então.

O que acontece então entre os séculos XIV e XVII na História de Espiritualidade? É difícil responder exactamente as correntes espirituais neste tempo, visto que continua a ser marcada pela turbulência de vários movimentos com ideias diversas, como forma de responder a crise que vivia no momento, o que podemos fazer é apenas indicar são os movimentos espirituais mais salientes do momento.



3.1. A escola “Renano-Flamenga”, a “Devoção Moderna” e o Renascimento



Podemos falar em primeiro lugar da escola “Renano-Flamenga”, a “Devoção Moderna” e o Renascimento que encontramos nos Países Baixos (Espanha), nas regiões de Rin, que vão ser focos privilegiados de vida espiritual que influenciam a Europa com novas técnicas, que perduram durante séculos, e alguns mesmo até aos nossos dias.



3.1.1. A escola “Renano-Flamenga”



Parte do s. XIII no território de França em que os mendicantes deixam sentir a sua influência na propagação das devoções populares (a Cristo, o Sagrado Coração, Maria e os Santo); é uma piedade vivida em grupo (Ordens terceiras, confrarias). É de salientar que estes movimentos pouco a pouco são independentes dos conventos e das paróquias, mas subjectivas e individuais. A piedade tem assim as suas bases na Bíblia, Patrística e Liturgia.

Nas escolas renano-flamenga os seguintes grupos laicos: os begardos e as beguinas; os Irmãos de livre espírito, os Amigos de Deus. Todos esses foram considerados como heréticos e condenados, por ex. os begardos e as beguinas foram condenados no Concílio de Viena (1311-1312).

Temos os autores representativos destas escolas: Eckhart (1260-1327) que difundia as seguintes doutrinas: a pobreza espiritual (Mt 5,3), “o homem pobre é aquele que não quer nada, não sabe nada e não tem nada”; o homem espiritual emprega as suas potencialidades, entendimento, memória e vontade no homem exterior só na medida em que o necessita aos cinco sentidos e o reserva os demais para o homem interior, engajar os sentidos a contemplação de um objecto nobre; e neste momento a alma interiorizada ama a Deus com todo o coração.

Juan Tauler (1300-1361) e Suso que continuam com as doutrinas de Eckhart, por ex. Tauler fala sobre o valor da interioridade, do fundo da alma, do nascimento de Deus nesse fundo ou no abismo de ser, a purificação da alma que a chama de noite, da união com Deus sem intermediários. Tauler sua grande preocupação como pregador e director espiritual era de levar o cristão a gostar da vida mística, que é a finalidade última da vida cristã, que é transformação em Deus nesse fundo interior do homem.

O caminho espiritual traçado por Enrique Suso (1295-1365) vem do seu mestre Eckhart, em que contêm os clássicos graus da vida espiritual: “principiantes, proficientes e perfeitos”. O 1º é o abandono em Deus, o despojo de si mesmo e das coisas criadas; o 2º, para a meditação e sequela a Cristo através da sua Humanidade, e o 3º, para a transformação em Cristo, sua divindade; nasce no fundo da alma a divindade, a semelhança do nascimento do Filho no seio da Trindade.



3.1.2. A “Devoção Moderna”

Entendemos a Devoção moderna a corrente espiritual que na segunda metade do século XIV brotou nos Países Baixos por obra, principalmente, de Geraldo Groote (1350-1384) e do seu discípulo Florencio de Radewijns (1350-1384), esses que foram fundadores da associação dos “Irmãos da vida comum” e a congregação agostiniana de Cónegos Regulares de Windesheim, e nos séculos XV e princípios do séculos XVI tivemos salientes ecritores como Geraldo Zerbot de Zutphen (1380-1471), Gerlac Peters (1378-1411), etc.



Temos como características:

- Anti-intelectualismo, como reacção as especulações de escritores da “Escola renana”, e têm preferências por uma espiritualidade mais afectiva. A sua devoção não significa nada de sentimental, mas a verdadeira piedade, vivida mais que intelectualizada.

- O cristianismo em contraposição ao teocentrismo transcendental da “Escola renana”. Cristo é modelo da vida espiritual, das virtudes. É um cristocentrismo prático, nada especulativo; daí a sua afeição pela vida histórica de Jesus, pela mediação nos mistérios da humanidade de Cristo, meios para a contemplação.



- É mais tradicional de caracter popular e moralizante, de tendência prática e ascética. Perde a profundidade, porém ganham adeptos e se universaliza na piedade.

- Subjectivismo e individualismo, marcada pelas tendências individualistas aos grandes interesses do Corpo Místico de Cristo (missões, apostolado), centra as suas próprias forças na própria salvação com complicados actos de piedade, mais interiores que exteriores.



3.1.3. A “douta piedade” do Renascimento

Se refere ao período do Renascimento de novas ideias na Europa, marcada, de modo particular na espiritualidade, pela Devotio moderna, com tendências ao interiorismo, ao subjectivismo e ao individualismo como superação da piedade farisaica e exteriorizada que se encontra no povo, e como a afirmação da dignidade da pessoa humana.

Temos como representantes desta espiritualidade o cardeal Nicolas de Cusa (1401-1464), que põe o acento a “douta ignorância” como caminho de acesso a Transcendência. E o Erasmo de Roterdam (1467-1536), o ponto mais alto da espiritualidade da época. Na sua obra “O manual do cavaleiro cristão”, aborda um cristianismo interiorizado, puro, sem cair no farisaísmo, com mais piedade e menos fórmulas, fundados na cultura e vividos na liberdade. Evangelismo, interiorismo e douta piedade são algumas notas específicas do cristianismo renovado promulgado por Erasmo.



Os traços principais da espiritualidade da Devotio moderna, podem se resumir:

- A espiritualidade vive com um certo sentimento trágico entre a vida e a morte, que toma corpo nas representações da arte dramática, nos escritos literários, na pintura e na escultura.

- A crença nos demónios e nas bruxas é de tal maneira que não só atinge os analfabetos, mas também a camada intelectual, por ex. o Papa Inoscêncio III publicou em 1484 a famosa bula contra inquisitores demoníacos “Malleus maleficarum” (Martírio de bruxas), na Alemanha.

- Práticas da religiosidade popular, como vimos antes. O povo está preocupado com a salvação; os meios como conseguir a salvação: culto ritual, uso dos sacramentos, peregrinações (Loreto, na Itália; Jerusalém, Roma, S. Tiago de Compustela); processões, devoções aos santos e suas relíquias.

Já no século XV o povo começa a fazer a leitura da Bíblia porque se traduzem em algumas línguas nacionais. Porém existem a Bíblia pauperum (Bíblia dos pobres) . Nas catedrais, existem representações plásticas das cenas cristãs do N.T. iluminados pelas cenas do A.T.



3.2. A escola espanhola de Espiritualidade

A espiritualidade espanhola se situam entre as idades Média e Moderna. Enquanto olha para o passado busca uma rica herança; enquanto olha para a modernidade e o futuro, é cheia de criatividade das ciências espirituais, de modo particular, na espiritualidade.

Na segunda metade do século XVI (1550-1600) a produção espiritual espanhola atinge o seu cume. Temos os grandes espirituais, os místicos geniais; porém o povo cristão não assiste no passivo a invasão da espiritualidade que inunda a Espanha desde os seus afluentes. Este povo vive activamente da intensa piedade que marcam os grandes “mestres”. Se pode dizer que a espiritualidade se “populariza”, se universaliza. Há um clima favorável para as ordens religiosas.



Os grandes mestres da época podemos destacar:

a) S. Inácio de Loyola (1491-1556)

Nascido em Loyola (Guipúzcoa, Espanha), em 1491, depois de uma vida mundana, se converteu lendo a vida de santos em Legenda áurea, de Jacob de Vorágine, e a Vida de Cristo, de Rodolfo de Sajonia.

Numa caverna de Manresa (Barcelona), em que faz uma vida solitária durante dez meses, recebeu uma forte iluminação enquanto se dedicava aos “exercícios espirituais”. Aí, em 1522, começou a redigir as primeiras páginas do seu livro mais famoso: os “Exercícios espirituais”.

Estudante em Paris, reuniu em torno de si um grupo de discípulos e em 1534 iniciaram a dedicarem-se a salvação das almas. Pode considerar-se como o ano do nascimento da “Companhia de Jesus”, aprovada pelo papa Paulo II em 1539.

A doutrina espiritual de Inácio de Loyola é destacado pelo seu metodismo e planificação da vida espiritual; seu ascetismo voluntário que recorda o seu carácter militar e que proporcionou depois a espiritualidade de “contra-reforma”. É, sem dúvidas, uma espiritualidade trinitária, teocentrica, eucarística e mariana.



b) S. Teresa de Jesus (1515-1582)

Nasceu em Ávila em 1515, numa família cristã de classe burguesa. Mediante a leitura da vida dos santos descobriu o sentido de Deus na sua vida. Na sua adolescência teve uma conversão definitiva (1528-1556), sua vida sofre alternâncias entre o fervor religioso e tibieza. Aos 21 anos tomou a hábito do Carmelo no convento da Encarnação de Ávila, onde professou no ano seguinte (1537). Em 1562 iniciou em Ávila a reforma do convento de S. José, que todavia se conserva até hoje. Em 1568 a reforma se estende a todas as frades, sob sua direcção . Apesar de ser uma monja de “clausura” estrita, com a permissão da Geral da Ordem, em 1567 iniciou uma vida ambulante de fundações que concluí-o pouco antes da sua morte, que aconteceu em Alba de Termes (Salamanca) em 4 de Outubro de 1582. fez a reforma da Ordem entre as monjas em 16 conventos, depois de ter percorrido 7.000 km no período da fundação (entre 1567-1582). Foi a 1ª mulher declarada pelo Papa Paulo VI “doutora da Igreja”, em 1970.

Temos várias obras da espiritualidade: a Vida ou a Autobiografia, Caminhos da perfeição, As fundações, As moradas ou o Castelo Interior, as Meditações sobre os Cânticos, Visita das descalças, as Constituições, e o Epistolário que conserva 475 cartas, das 14.000 que escreveu durante os 15 últimos anos da sua vida.

A espiritualidade de Teresa de Jesus é o reflexo da psicanálise da sua vivência pessoal marcadas pela: perfeição cristã (o processo de amadurecimento que omeça no baptismo e termina na união esponsal com Cristo – matrimónio espiritual); a 2ª conversão (a 1ª se encontra como orante ante Cristo que chama; e a segunda a conversão definitiva – a inundação sobrenatural); o caminho da oração (relação íntima e continuada com Deus através de Cristo e sob influência do seu espirito, com seguintes graus: oração vocal, meditação, recolhimento activo, recolhimento passivo, quietude, união simples, desposório, matrimónio espiritual); experiência mística (um dom acrescentado ao dom ordinário da graça baptismal, porém nunca fora da experiência originária); Deus é transcendente e salvador em Cristo (Deus se revela como salvador em Cristo; a humanidade de Cristo é a única mediação, por isso o cristão orante não pode prescindir dela nem se quer nos últimos graus da contemplação mística); a Igreja “em grandes tempestades” (a divisão da Igreja por lado, os hereges e por outro, os luteranos); o caminho da humildade verdade (não dizer mentiras senão andar na verdade); o compromisso cristão, ou as “obras” (o compromisso temporal – ser escravo de Deus e do homem).



c) S. João da Cruz (1542-1591)

Nasceu a Fontiveros (Ávila) no ano 1542, é o último dos 3 irmãos, de um matrimónio modesto e de bons cristãos. Morto o pai na infância, passou por uma experiência de uma pobreza extrema. Em Medida do Campo (Valladolid), vila próspera de Castilla, residiu durante 13 anos, aí serviu os enfermos do hospital e estudou humanidades. Em 1563 iniciou a vida religiosa no noviciado carmelitano de Medina, fazendo os estudos de filosofia e teologia na Universidade de Salamanca. Foi ordenado em 1567, e neste mesmo ano se encontrou com a S. Teresa de Ávila. Em 1567, sob a influência de Teresa, iniciou em Duruelo (Ávila) a reforma teresiana entre os frades. Tratado como rebelde pela Ordem Carmelitana, João da Cruz é sequestrado, sendo confessor das monjas carmelitanas calçadas da Encarnação, de Ávila, e conduzido a Toledo, onde passou 9 meses no cárcere conventual (dez. 1577-agos. 1578), em que miraculosamente escapou. Foi superior, formador nos conventos dos descalços e muito solicitado como director espiritual. Morreu em Ubeda (Jaén) a 14 de dezembro de 1591. em 1926 foi declarado Doutor da Igreja.

S. João da Cruz é famoso por ser escritor. Um altíssimo poeta lírico e profundo teólogo místico .

Entre as suas obras se destacam: Subida ao Monte Carmelo, Cântico Espiritual, a Chama de Amor viva; Noites de Espírito. Temos também escristos breves como: Cautelas, Avisos, Ditos de luz e amor.

Doutrina espiritual – Nas suas resplandece: dinamismo do caminho; fortes fundamentos bíblicos e experiencial; a união transformante, meta do caminho; necessidade das mediações (o exercício das virtudes teologais); a purificação (noite activa dos sentidos – controle dos sentidos; noite passiva – contemplação); Cristo mediador (Cristo é o que ilumina todo o processo da união, o objecto é o mesmo amor teologal; o caminho espiritual é mediante a função de Cristo); consumação trinitária (a plenitude da vida cristã é sempre uma experiência trinitária); morte de amor (romper a tela para o doce encontro com a divindade; é uma prefiguração da glória no tempo – 2Cor 5,1); dinamismo apostólico de amor (a verdadeira fertilidade de acção consiste no amor; o místico é aquele que ama);



3.2.2. Correntes e movimentos



a) O erasmismo

O eramismo é um movimento religioso-espiritual e também cultural fundamentada nas obras de Erasmo de Roterdam, porém que se converteu numa mentalidade de elites religiosas do momento. Estavam mais orientados a oração mental e incluindo outros ritos externos e cerimónias. Visava mais a ordem social, fundamentada na metáfora do Corpo místico de Cristo, que é o povo cristão, que defende a igualdade social, a liberdade e a tolerância, a individualidade da pessoa.

Erasmo é conhecido na Espanha desde 1516, quando se publica a sua obra: Sermão do Menino Jesus.



b) Os judeus-convertidos

Durante a Idade Média nas Espanha conviviam três etnias ou três religiões: cristãos, mouros e judeus. Os Reis Católicos fundaram a unidade política na unidade religiosa, daí a política de forçar as conversões a fé cristã ou a expulsão da Espanha. Alguns se convertiam exteriormente praticando as suas religiões as ocultas, é o caso dos judaizantes, ou os convertidos dos judeus, que exigiam ocupar certos encargos para ingressar na clausura ou nas Ordens religiosas.



c) Os alumbrados

É o movimento mais complexo do mapa espiritual da Espanha no século XVI. Muito confuso, enquanto crenças e praxis, origens e fins. Defendiam um influxo imediato do Espírito Santo, a interpretação pessoal da Escritura, menosprezavam as “obras” exteriores, de certas tradições da Igreja (jejuns, penitências, culto exterior, uso de imagens), a proclamação da liberdade da consciência individual, luta entre carisma e instituição, etc. Tudo o que dizia a oração vocal é inválido, defendiam unicamente válida a oração mental. Todo o exterior era uma “prisão”.

Se consideram iluminados por Deus, por isso, é imoralidade tudo o que dizia respeito ao sexo, não se casavam, isto é, não podem pecar no corpo enquanto a alma está unida a Deus. Em torno dos anos 1570-1590, se pode afirmar que é uma geração dos “alumbrados”, que se fixam sobretudo da Castilla a Extremadura, até a Alta Andalucia. Os últimos “alumbrados” reaparecem em Madrid e Sevilha entre 1620-1623.



3.3. As características gerais da espiritualidade da Escola espanhola

a) Riqueza – Rica em muitos sentidos: por abundância de temas tratados, tradições e renovações.

b) Popular – Não é uma espiritualidade de elites, é também, popular, pois o povo participa dos interesses temáticos dos grandes escritores, sobretudo o tema da oração mental e vocal.

c) Ascética e mística – A ascética, como exaltação de valores eternos, que nascem das decisões heróicas dos grandes mestres (Inácio de Loyola, Teresa de Jesus, João da Cruz), e também reis como (Isabel, Carlos V, Filipe II). A ascética como dedicação de um caminho, como mortificação da vida (virtudes). A mística, como sinal supremo, descobridora e conquistadora.

d) Psicólogos – Os místicos espanhóis, não só, são dados a análise de consciência: a experiência, que é inefável, têm a tradição através das variações dos seus estados.

e) Individualista e eclesial – O problema do individualismo afecta os místicos, é o caso dos “alumbrados”, profetas e os carismáticos. Porém os místicos espanhóis têm superado esta dimensão colocando num sentido da Igreja mãe e mestra, por isso é eclesial, que supera e transcende o individual.

f) Apostólica e missionária – A missão era uma opção para os “espiritualistas”. É só ver as viagens de S. Teresa de Jesus, uma monja, nas suas fundações.



4. O século XVII na França

A França não monopolizou o s. XVII, porém é o centro europeu mais importante na História da Espiritualidade, como foi para Espanha no s. XVI. Alguns chamam de “Escola francesa” a todo esse período de florescimento do s. XVII, ainda com mais exactidão a Escola do cardeal Bérulle. Porém veremos as correntes mais importantes, tanto ortodoxas como heterodoxas.



4.1. Correntes espirituais



4.1.1. O humanismo devoto

Uma corrente mais popular, prática e universal e tem como iniciador S. Francisco de Sales (1567-1662), pregador dos calvinistas e bispos de Genebra, conhecido como mestre e director espiritual.

A palavra “humanismo” não invoca, neste caso, nada de naturalismo, senão uma espiritualidade muito normal, que tem em conta o homem com a sua realidade deficiente, que não é áspero, que combina o rigor e a suavidade.

Em S. Francisco de Sales a devoção (piedade) tem de classicismo, de amor e da cultura, sem se desligar porém das bases populares. Esta tendência espiritual nasce no momento propício da mentalidade barroca, do espírito de Contra-reforma, cheia de optimismo, de alegria, de gozo, de confiança na natureza humana e no futuro da região católica. O humanismo devoto, como corrente ou mentalidade, nasce da pedagogia dos colégios que fundam as antigas e novas Congregações religiosas. É neste sentido que o humanismo devoto ultrapassa a doutrina e a obra de S. Francisco de Sales. Era a resposta mais prática que teórica ao pessimismo pregado pela Reforma protestante.

O humanismo devoto foi exposto nas obras de S. Francisco de Sales, principalmente nos tratados: Introdução a vida devota e Tratado de Amor de Deus.

A doutrina de S. Francisco de Sales é uma convocatória universal a santidade cristã, própria de todos os “estados” de vida e de qualquer condição social. A perfeição se mede pelos graus de amor que se manifestam no cumprimento da vontade de Deus. Um dos pontos capitais é a “santa indiferença” ou o abandono confiado nas mãos de Deus Pai. Cristo é o modelo supremo; por isso, o cristão, laico, religioso ou sacerdote, tem que Lhe imitar, como exigência do baptismo, no exercício das virtudes.

A oração, junto com a presença de Deus, é o exercício principal da vida espiritual. A oração é o exercício de amor, é diálogo (intercâmbio de palavras, afectos, sentimentos entre Deus e o orante) tem graus e cresce desde a simples oração até a união total com Deus.

A chamada universal a santidade significa a identidade do caminho para todos os estados de vida; cada um usa os meios dependendo das suas obrigações familiares, sociais ou religiosas.



4.1.2. A escola do cardeal Bérulle (1575-1629)

O cardeal Bérulle, de nobre família, é o mais típico da “Escola francesa”. Como jovem frequentou a “Escola abstracta”, mas depois aprofundou uma piedade cristológica.

Bérulle, além de ser colaborador em assuntos políticos, é uma personagem activa em várias frentes. Fundou o Oratório de Jesus como Congregação religiosa, que tinha como vocação a direcção nos seminários. Introduziu os carmelitas descalças na França. Escreveu importantes obras de espiritualidade: Breve discurso de abnegação interior (1597); Discurso dos estados e grandezas de Jesus (1623) e a 2ª parte da mesma obra em 1626.

A doutrina espiritual beruliana se baseia numa profunda concepção do mistério de Deus que faz o homem viver na dependência constante e absoluta, como criatura e criatura redimida. Esta experiência de dependência confere a sua espiritualidade um carácter teocêntrico e cristológico ao mesmo tempo. Dependência natural e sobrenatural, a 1ª indestrutível, a 2ª só pelo pecado. A obrigação do homem é de viver em adoração perpétua da Trindade como resposta de amor.

A Encarnação do Verbo, é a ideia central do seu pensamento cristológico, o cristão consciente desse mistério histórico deve viver imerso neste mistério, mediante a aderência aos estágios da vida interior de Cristo e as suas acções (advento, natal e ciclo pascal), estados ontológicos e psicológicos, que continuam realizando-se no tempo. Um dos estados é o da adoração.



4.2. A espiritualidade do movimento jansenista

O jansenismo surge nos princípios do s. XVII. Tem fundamentos de princípios teológicos, que nasce de uma espiritualidade derivada da política que tem contra aos autoridades eclesiásticas, defendendo casaropapistas, anticlesiásticas, o josefinismo .

Reduzindo a sua essência espiritual e religiosa, o jansenismo nasce com a pretensão de solucionar o problema da liberdade e da graça. Foi condenado pelo papa Alexandre VII em 1966 e Inoscêncio XI em 1979.

Tem como autores principais: Cornélio Jansenio (Jansen – 1585-1638), professor de Lovaina e bispo de Upres, autor da obra Augustinus, publicada em Lovaina em 1640, dois anos depois da sua morte. Jean Durvergier de Hauranne (1581-1643), contagiado pelas ideias do bispo, se dedicou a uma campanha activíssima na direcção espiritual, ao trabalho pastoral e a difusão da doutrina com livros, folhetos e cartas. Temos também António Arnaud, Pascal, Quesnel e outros.

A sua doutrina espiritual está baseada em ideias dogmáticas calvinistas e luteranas, basicamente contidas na obra de Jansenio.

- A natureza humana, depois do pecado de Adão, está totalmente corrompida e por isso o homem não é livre, tem uma incapacidade absoluta de fazer o bem se não for ajudada por uma graça eficaz, não suficiente.

- Em lugar de livre arbítrio, existe no homem uma força instintiva que o inclina involutariamente a fazer o bem ou o mal, a chamada “delectacion”, que pode ser celeste ou terrestre, e divide o destino do homem em trágico ou glorioso. Se Deus não ajuda o homem com a graça eficaz, peca necessariamente, porque seguirá a delectacion terrestre. E se o ajuda, seguirá a delectacion celeste. Aqueles se convertem em condenados e estes predestinados.

- Daqui se deduz que existe uma dupla predestinação: o céu e o inferno.



- Cristo não morreu por todos os homens, senão para os predestinados ao céu, que são os únicos que recebem a graça eficaz para não pecar. A redenção não é universal.

- Para a comunhão exigia uma total pureza de consciência, arrependimento dos pecados e fazer penitências. Por isso se aconselha privar-se da comunhão para fazer penitência e purificar-se das comunhões sacrílegas.

- A penitência corporal, como controle da delectacion terrestre e o delectacion celeste, a consideravam como sinal de estar predestinados e por isso, quem as cumpria sentiam paz interior, provocada por uma graça extraordinária de Deus.



4.3. O quietismo

O quietismo histórico estava localizada na Itália e na França no s. XVII. Desde os meados do s. XVII existe no Norte da Itália um surgimento espiritual entre grupos de homens e mulheres que praticam a oração mental desprezando a vocal, assim como o uso de imagens, as cerimónias e penitencias, etc.

Em 1682 o arcebispo de Nápoles, cardeal Carraccioli, dirige uma carta ao papa Inocêncio XI de certa práticas espirituais que actuavam na sua diocese e se dedicavam a “oração passiva, que diziam de pura fé e quietude”, de que esperam a iluminação de Deus, conhecidos com o nome de quietistas. Por dedicar-se a essa oração abandonam os métodos tradicionais da meditação, recusam a oração vocal, entre elas o rosário, assim outras práticas de piedade.

O mais importante de todos os quietistas é Miguel de Molinos (1628-1696 ), partícipe do movimento de piedade barroca na Escola de Cristo em Valência, porém desenvolveu a sua actividade como director de espiritualidade em Roma a partir do ano 1664. Publicou a célebre obra: Guia espiritual, que desembaraça a alma e conduz por interior caminho para alcançar a perfeita contemplação e o rico tesouro da paz interior, traduzida em várias línguas. Sua doutrina foi condensada e condenada pela Constituição Coelestis Pastor de Inocêncio XI, a 20 de Novembro de 1687.



A doutrina quietista condenada se resume no seguinte:

- caminho de interioridade em que predomina a passividade e o abandono nas mãos de Deus, com uma certa aniquilação da alma;

- ausência da reflexão na oração e no exercício da oração de quietude e de fé;

- recusa da devoção sensível, e das devoções a Virgem ou aos santos;

- certos actos carnais não são pecados enquanto provocados pelo demónio;

- nos estágios superiores da vida espiritual não é necessária a confissão, etc.



5. O século XVIII-XIX – Idade Moderna

5.1. Autores principais

5.1.1. S. Afonso Maria Ligorio

5.1.2. S. Paulo da Cruz

5.2. Espiritualidade Popular

5.2.1. A espiritualidade Popular do Barroco – s. XVII

5.2.2. Piedade Popular e Renascimento – s. XIX

6. O século XX – Espiritualidade contemporânea

6.1. Raízes da espiritualidade contemporânea

6.2. A liberdade e os direitos humanos

6.3. Movimentos modernos e o seu influxo na espiritualidade

6.3.1. O americanismo

6.3.2. O moderniasmo

6.3.3. O problema místico

7. A espiritualidade em torno do Concílio Vaticano II

8. O caminho pós-conciliar e algumas tendências espirituais emergentes depois do Vaticano II

CONCLUSÃO



BIBLIOGRAFIA

MAROTO, Daniel de Pablo, Historia de la Espiritualidad Cristiana, Editorial de Espiritualidad, Madrid, 1990.

BOUYER Louis – DATTRINO Lorenzo, La Spiritualità dei Padri 3/A, Storia della Spiritualità, Grfiche Dehoniane, Bologna, 1998.

BOUYER Louis, La Spiritualità dei Padri 3/B, Storia della Spiritualità, Grfiche Dehoniane, Bologna, 1999.

La Teologia Spirituale, Atti del Congresso Internazionale OCD, Edizioni del Teresianum, Roma, 2000.

ANCILLI Ermanno, Spiritualità Medioevale, Annotazioni storiche, Teresianum, Roma, 1983.

PACHO Eulogio, Storia della Spiritualità Moderna I-II-III, Teresianum, 1984.

CASTELLANO Cerevera Jesus, Storia della Spiritualità Contemporanea, Teresianum, Roma, s.d.

RUIZ Federico, Le Vie dello Spirito, Sintesi di Teologia Spirituale, Edizioni Dehoniane, Bologna, Bologna, 1999.

LAUDAZI Carlo, Teologia Spirituale, Temi Fondamentali, Teresianum, Roma, s. d.

SECONDIN Bruno – GOFFI Tullo (org.), Curso de Espiritualidade, Experiencia – Sistemática – Projecções, ed. Paulinas, São Paulo, 1994.

Dicionário de Espiritualidade, dirigido por Stefano de Fiores e Tullo Goffi, S. Paulo: Paulus, 1993.

Ensinamento bíblico sobre a santidade

Ensinamento bíblico sobre a santidade A ideia da santidade não é exclusiva da Bíblia judeu-cristã mas, também se encontra em diversas c...