terça-feira, 13 de março de 2012

VISÃO CRISTÃ DA MORTE


Com o presente tema, acima supracitado pretendemos apresentar em breve resumo o sentido da morte sob ponto de vista da realidade cristã. O que é a morte para um cristão? Como um cristão deve encarar a o fenómeno da morte?
Para desenvolver o nosso tema teremos que recuar no tempo anterior ao cristianismo, pois é lá onde poderemos encontrar a origem da morte e o desenvolvimento ou posicionamento sobre ela.

A Sagrada Escritura, ou seja, a Bíblia com o Antigo e Novo Testamentos nos fornece uma visão clara sobre o sentido da morte e do desenvolvimento do pensamento em torno da morte que caracterizou o período anterior ao cristianismo que é representado pelo Antigo Testamento. O Novo Testamento representa a era do cristianismo e a morte é vista e encarada num outro sentido, mas as bases desta nova visão encontramo-las também no Antigo Testamento.

A MORTE

De acordo com o segundo relato da criação o Homem foi formado a partir de duas matérias a saber: matéria física (palpável e visível) e matéria espiritual (invisível e impalpável) «Então Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente» (Gn 2,7). Portanto, o homem é formado pela matéria que é o corpo (corruptível, finito) e pelo espirito (incorruptível e infinito).

A morte é a separação destas duas matérias, ou seja, do corpo e do espirito de acordo com o cristianismo. Podes contrastar esta realidade na pessoa de Jesus aquando da sua morte «e Jesus deu um forte grito: ˝Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito. Dizendo isso, expirou» (Lc 23,46); «Quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado E inclinado a cabeça, entregou o espirito» (Jo 19,30).

VISÃO DA MORTE NO ANTIGO TESTAMENTO

Analisando o Antigo Testamento podemos encontrar dois pontos de vista em relação a morte. O primeiro ponto de vista é aquele que apresenta uma visão negativa da morte e o segundo ponto de vista realça uma visão positiva da morte. 

Visão negativa da morte

A visão negativa da morte é aquela que defende a morte como o fim de tudo «Com efeito, não é o Xeol que te louva, nem a morte que te glorifica pois já não esperam em tua fidelidade aqueles que descem a cova. Os vivos, só os vivos é que louvam, como faço hoje. O pai dá a conhecer aos filhos a tua fidelidade» (Is 38, 18-19). Os seus seguidores ou defensores defendem ou pensam que depois da morte não existe mais nada, ou seja, não podemos esperar alguma coisa depois da morte ou dos mortos.
Outro aspecto predominante na visão negativa da morte tem a ver com o facto de muitos encararem a morte como resultado de uma maldição, castigo ou punição divina. Portanto a morte seria um resultado da desobediência, ou seja, algo feito pelo homem e que desagradou a Deus «E agora, Senhor, lembra-te de mim, olha para mim. Não me castigues por meus pecados, nem por minhas inadvertências, nem pelas de meus pais. pois pecamos em tua presença e desobedecemos a teus mandamentos; e nos entregastes ao saque, ao cativeiro e à morte, ao escárnio, à zombaria e ao vitupério de todos os povos entre os quais nos dispersastes». (Tb 3,3-4).




Visão positiva da morte

A visão positiva da morte é aquela que sustenta a ideia de que:
A morte não é o fim de tudo. A partir de um certo momento, nasceu no seio de Israel e no meio da comunidade judia a ideia da existência e da esperança de algo após a morte «E Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão, como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos justiça serão como as estrelas, por toda a eternidade» (Dn 12,2-3).
Dentro desta visão positiva da morte surge a ideia da retribuição e da ressurreição, factos estes que ocorrem após a morte.

Veja também os seguintes trechos bíblicos: Jb 4, 8-9.
TIPOS DE MORTE

Existem dois tipos de morte. A morte física e a morte espiritual.

MORTE FISICA: é aquela á aquela que atinge todo o homem, ou seja, todo ser vivo.

MORTE ESPIRITUAL: é aquela em que o homem se encontra privado do relacionamento com Deus, ou seja, quando o homem perde a possibilidade de viver uma vida feliz na eternidade com Deus, devido aos pecados cometidos.
                                                                                                                           



VISÃO DA MORTE NO NOVO TESTAMENTO

Com a Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, a morte perdeu a sua imponência diante da vida. A morte passou a ser encarada como uma passagem, transformação ou estagio que nos conduz para uma outra vida melhor. Portanto, neste caso a morte já não poderia ser encarada ou vista num sentido negativo.
Todo cristão deveria desejar morrer, pois somente a morte nos garante o encontro e a vivência com Deus, em Jesus Cristo. O que dissemos anteriormente é sustentado pelo Catecismo da Igreja Católica nº 1010 «Graças a Jesus Cristo, a morte cristã tem um sentido positivo Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro» (Fil 1,21). «É digna de fé esta palavra: se tivermos morrido com Cristo, também com Ele vivemos (2 Tim 2,11)».

A verdadeira morte é aquela que acontece com o pecado, pois esta não dá a possibilidade de o homem estar junto de Deus. As aqueles que morrerem na graça de Deus, o próprio filho de Deus, Jesus Cristo lhes garante que não morrerão «Em verdade, em verdade, vos digo: se alguém guardar a minha palavra jamais verá a morte» , «E a vontade daquela que me enviou é esta: que eu não perca nada do que ele me deu, mas ressuscite no ultimo dia. Sim, esta é a vontade de meu pai: quem vê  o filho e nele crê tem a vida eterna,  e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6,39-40). 


A MORTE COMO TRANSFORMAÇÃO


A morte serve para nós como meio de passagem para uma outra vida. A morte nos transforma «Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdará a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final, sim a trombeta tocara, e os mortos ressurgiram incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade  e que este ser mortal revista a imortalidade. Quando, pois, este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido a imortalidade, então cumprir-se-a a palavra da Escritura: A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão» (1 Cor 15,50-55), e nós hoje podemos testemunhar este facto graças ao baptismo que recebemos,  pois com ele, nós morremos com Cristo para depois ressuscitarmos com ele, já transformados para uma vida nova. É Cristo que transforma a morta .



OS MORTOS E OS VIVOS DIANTE DO SENHOR

Estar vivo ou morto é indiferente para o cristão? Vejamos o que nos esclarece São Paulo na sua primeira carta ao Tessalonicenses e aos Romanos:

«Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia. Pois isto vos declaramos segundo a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui  para a Vinda do Senhor ,não passaremos à frente dos que morreram. Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz d0 arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os mortos em Cristo ressuscitaram primeiro; em seguida nós, os vivos que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim, estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras» (1 Tes 4,13-18).

Este trecho bíblico salienta que o que importa é o estado de graça que devemos estar no momento do julgamento. Vejamos como são Paulo defende esta posição na carta aos Romanos:
«Pois ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo, porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer moramos, pertencemos aos Senhor. Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos» (Rom 14,7-9).


COMO SERA A VIDA DEPOIS DA MORTE?

A vida depois da morte será diferente da actual, diferente desta que temos na terra. Certos homens do tempo de Jesus, também quiseram opor a prova sobre como seria a vida depois da morte contando uma história de uma mulher que em vida tinha sido casada por sete homens. depois da morte de quem seria esta mulher? Foi a questão que eles colocaram a Jesus ao que respondeu: «Estais enganados, desconhecendo as  as Escrituras e o poder de Deus. Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são todos como anjos no céu» (Mt 22, 29-30).
São Paulo também nos deu uma indicação de como seria a vida depois da morte. Ele procurou dissipar algumas ideias que nós preconcebemos sobre a vida depois da morte, dizendo: «Porquanto o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria no Espirito Santo.» (Rom 14,17).

Concluindo esta minha breve reflexão sobre a morte diria que é muito importante para vós ministros da esperança transmitir a verdadeira doutrina  cristã sobre a morte no meio da nossa cultura e dos nossos valores tradicionais. Como ministros de esperança deveis estar presentes em todos momentos da vida do doente e dos moribundos para que se sintam confortados e fortalecidos espiritualmente.




AS EXÉQUIAS


Ministério da Esperança
Ministro da Esperança

a)      Identidade: o ministro da esperança é um cristão, idóneo que participa no núcleo. Preside as cerimónias todas do funeral, tanto as realizadas na casa do defunto como as realizadas no cemitério e na Igreja em conformidade com as orientações da Igreja.
Sua função é de enterrar e acompanhar aos doentes. Nós muitas vezes nos preocupamos com a pessoa depois de ela ter morrido. Não é uma atitude de bons cristãos. É preciso acompanhar o defunto desde a sua doença. Por isso é salutar que os ministros da esperança acompanhe mais de perto ao doente.
Fazer presente na família do defunto e na comunidade cristã esta esperança, esta fé. Este empenhamento por construir com Jesus Cristo esta vida regenerada. Por é bom que cada núcleo tenha dois ministros da esperança, segundo o nosso directório arquidiocesano da pastoral.
Preside às orações  da comunidade e da família na casa do defunto, no cemitério e na Igreja, nas cerimónias que acompanham a morte da pessoa. Proclamando a Palavra de Deus nas cerimónias fúnebres; nestes trabalhos utilizará uma túnica digna em que prevalece a cor roxa.
O ministro da esperança coordena e garante apoio espiritual e humano da comunidade cristã à família do defunto ou enlutada.

b)      Perfil (aspecto ou retracto) do ministro da esperança: apresentar a fé e a esperança da comunidade cristã com o exemplo da sua vida.
Anunciar com firmeza e simplicidade o significado da morte para um cristão à luz da morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Consolar com carinho e fortaleza a família do defunto, imprimido nela a alegria da ressurreição e a confiança no amor sem limite do Pai.
Apresentar os textos bíblicos mais apropriados para estes momentos e os cantos mais expressivos.
Respeitar a vontade tanto do defunto como da sua família na organização do programa das cerimónias fúnebres, sem desvirtuar o sentido cristão das mesmas e sempre em conformidade com as normas da Igreja.
Suscitar a fé nos presentes às cerimónias fúnebres através duma apresentação positiva da fé cristã, evitando toda a ameaça, desprezo ou espírito proselitista perante os acompanhantes do defunto. 
Animar a participação da comunidade cristã nas cerimónias fúnebres.


c)      Quem tem direito as exéquias

Exéquias: é uma cerimónia com as quais a Igreja implora o auxílio espiritual para os defuntos e honra os seus corpos, Cfr. Cânone 1176.
Exéquias não quer dizer missa de corpo presente. Quer dizer uma cerimónia fúnebre.
Entretanto, existem exéquias dentro de uma celebração eucarística para homenagear um nosso defunto.
E hoje quem morre vítima do suicídio pode ter direito as exéquias cristãs, pois o que lhe levou a morrer são razões externas em alguns casos.    

É um direito de um baptizado ter um funeral cristão. Porque pelo Baptismo já estamos incorporados na Igreja de Cristo, Cânone 96, portanto, nós temos deveres e direitos.
Só que infelizmente nos esquecemos dos deveres. Antes de chegarmos aos direitos devemos passar pelos deveres.
O Cânone 1176§1 declara o direito de todos os fiéis às honras fúnebres.
As exéquias são um direito para o crente e dever para a comunidade.
Cânone 1176, “Devem fazer-se exéquias eclesiásticas aos fiéis defuntos, segundo as normas do direito.
Enterrar os mortos não é um mandamento mas obra de misericórdia. No catecismo aparecem as obras de misericórdia; uma das obras é enterrar os mortos; o catecismo não explica como é que as coisas devem se passar na prática. As orientações práticas como já fiz referência aparecem no Direito Canónico.
O Cânone transcrito acima transforma aquilo que é simples obra de misericórdia em lei para a comunidade (Igreja) e um direito para o crente falecido. Porém, há que ter presente o seguinte aspecto: como viveu ele (defunto) o seu ser cristão. Este tem o direito de ser assistido pela comunidade a que pertenceu até a hora da morte.

Casos especiais

Cânone 1183 §1 No que respeita às exéquias, os catecúmenos devem ser equiparados aos fiéis.
§2 O ordinário do lugar pode permitir que sejam concedidas exéquias eclesiásticas às crianças que os pais tencionavam baptizar, mas que morreram antes do Baptismo.
§3 Podem conceder-se, segundo o prudente juízo do ordinário do lugar, exéquias eclesiásticas aos baptizados pertencentes a alguma Igreja ou comunidade eclesial não Católica, a não ser que conste da sua vontade em contrário, e contanto que não possa encontrar-se ministro próprio.
Os dois primeiros parágrafos baseiam-se, sobretudo, no chamado Baptismo de desejo. De facto a Igreja Católica acredita em três formas de Baptismo.

a)      Baptismo de água: quando a pessoa é baptizada normalmente, incluindo o Baptismo em perigo de vida.
b)      Baptismo de sangue: quando uma pessoa é morta por causa da fé, antes de ser baptizada (mártir).
c)      Baptismo de desejo: quando uma pessoa queria ser baptizada mas morre antes de o ser, por qualquer razão, alheio à sua vontade.

QUARESMA

QUARESMA, A EXPERIÊNCIA COM DEUS HOJE
O mistério pascal, paixão, morte e ressurreição de Cristo, é desde os primeiros tempos do Cristianismo o centro da vida cristã e o ápice da revelação que Deus faz de si mesmo. Com a Páscoa de Cristo ficamos sabendo que a morte de Jesus não se circunscreve a uma horrível e estúpida tortura nem tão pouco ao cumprimento de um qualquer calendário divino. Fora dessa ideia. Antes, pelo contrário, o Verbo assume a nossa carne e, assim, reconduz a si todas as nossas fragilidades, dando-lhes um sentido mais pleno. Aliás, «O Verbo encarna para que Jesus se sacrifique; mas Jesus só morre para ressuscitar; e só ressuscita para salvar a humanidade» di-lo José Augusto Mourão. Portanto, à luz dessa paixão, morte e ressurreição, fica redimida a nossa debilidade e confirmada a nossa divindade porque fomos criados “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26) e de honra e glória fomos coroados (Sl 8). Este acontecimento central da nossa fé não se reduz a um momento específico na história humana, ele actualiza-se cada vez mais na realidade concreta de cada povo, etnia, raça, situação social, crença religiosa e etc., razão pela qual ousámos considerar a Quaresma como uma experiência com Deus hoje.
Como dissemos, desde sempre a Igreja tomou consciência de que a Páscoa constitui o vértice e corolário supremo da sua vida, o centro de convergência da história e a única solução possível capaz de conferir-lhe um sentido. A morte de Jesus vem restaurar tudo, o homem e o universo. Por isso mesmo, os primeiros cristãos descortinam a urgência de uma celebração única da Páscoa que se firma desde o II século. Mas para ser uma celebração digna, deverá ser preparada da melhor forma possível, ou seja, com a oração, a penitência e o jejum. Esta preparação só encontra uma sistematização bem precisa a partir do IV século em que ficamos com os 40 dias intensamente vividos com profunda impetuosidade.
A Quaresma como experiência de Deus hoje na vida das nossas comunidades e na vida concreta de cada cristão é a força propulsora que nos ajuda a reviver com fé e esperança o evento dramático-salvífico da morte e ressurreição de Jesus. Este tempo litúrgico que actualiza o acontecimento culminante da história salvífica caracteriza-se mormente com duas dimensões: a penitencial e a baptismal. A ser isso, é um tempo que nos convida a tomar consciência dos nossos pecados, renovar o nosso agir e criar condições para a conversão reavivando profundamente a nossa caminhada de fé e de aliança com Deus.
De facto, a nossa experiência de Deus hoje só é exequível mediante acções concretas que exigem de nós um pouco mais do nosso sacrifício. E aí se percebe o valor do jejum e da penitência. O jejum não significa privar-se dos alimentos sem um propósito concreto de poder ajudar a quem precisa do nosso aconchego; significa antes, afastar-se do pecado, amar a Deus e ao próximo, alimentar-se mais abundantemente da Palavra de Deus e levar uma vida de oração mais intensa; significa igualmente «fazer com que os pobres (necessitados) sejam beneficiados com o que se economiza jejuando» (GELINEAU, J., Em vossas assembleias, I, p. 113). E o ápice da penitência é, certamente, a celebração da grande festa da reconciliação pela qual restabelecemos a relação com Deus rompida pelo pecado.
Na verdade, estamos no tempo em que exigimos mais de nós mesmos, usando maior vigilância evangélica, a fim de renovarmos a soberania de deus sobre nós, unidos a Cristo que vai ao encontro de sua Santa Paixão. De certo que cada um terá sua maneira própria de viver a espiritualidade deste tempo quaresmal. Por isso, o espírito austero e sóbrio da Quaresma deve transparecer também na vida social, profissional, familiar e inclusive nas nossas comunidades cristãs. Portanto, pela instituição da Quaresma a Igreja não leva os seus fiéis a simples exercícios de práticas exteriores, mas ao empenho sério de amor e de generosidade para o bem dos irmãos à luz da exortação que nos faz o profeta Isaías «Não sabeis acaso o jejum que mais me agrada? Liberta os oprimidos, quebra as opressões; reparte o teu pão com quem tem fome, dá abrigo ao pobre abandonado…» (Is 58,6-8).
Enfim, almejamos que a Quaresma deste ano nos leve a uma nova e memorável experiência com Deus no hoje das nossas vidas. Que a Santíssima Trindade: o Deus Pai, Filho e Espírito Santo, que se nos comunica ininterruptamente aponte-nos a verdadeira vivência da espiritualidade quaresmal e do mistério pascal que se actualiza também na situação concreta do nosso século. Que Maria Santíssima, aquela que soube suportar a dor de ser mãe e assumir a cruz do seu Filho a meio de muita angústia nos ensine a ajoelhar e orar ao Deus Filho, nosso redentor e solução inadiável das nossas preocupações.
Bem-haja para todos.

A ESPERANÇA DO MUNDO

“A esperança do mundo” à luz da obra de Charles Harold DODD, A mensagem de São Paulo para o homem de hoje, ed. Paulinas, São Paulo 1981, pp. 29-40.

Introdução
Nas breves linhas que apresentamos a seguir falaremos da visão, do apóstolo dos gentios, sobre “A esperança do mundo”: sua condição e destino conforme a sua época histórica. Esta abordagem será feita em três perspectivas: a primeira concernente à parte da contextualização do seu pensamento, a segunda sobre as atrocidades do mundo e, por fim, a terceira sobre a esperança optimista do mundo liberto por Cristo. Apesar de ter denotado que “o mundo trazia, profundamente impressas, as marcas do fracasso e da imperfeição”, o mundo não está “condenado eternamente a permanecer nesse estado” (cf. Rm 8,18). Portanto, esta reflexão tem como texto basilar a Carta do apóstolo aos Romanos, principalmente, Rm 8,18-25.

1. Contextualização
O apóstolo dos gentios viu o mundo dos homens em dois grupos opostos: a sua própria nação e a sociedade pagã, isto é, praticamente o império greco-romano. Nessa época, o império estava, a seu ver, efectivamente podre de vícios e injustiças. O seu quadro da moral pagã é sombrio mas na sua maior parte poderia ser corroborado com fontes pagãs. O seu sistema político visava a reclamação do direito e a superação da injustiça, e na sua medida tivera êxito.
O seu juízo, contudo, não era indiscriminado nem cego. Mesmo no pagão reconhecia um conhecimento natural de Deus, uma consciência que dava testemunho de uma lei “escrita no coração”, um conhecimento instintivo do bem e do mal. Paulo via uma perversão monstruosa do conjunto, portanto do mundo. Certa massa da humanidade, a progénite de Deus, tomara de algum modo um rumo errado tão decisivo que a cada passo mais se afastava de Deus. A luz que nela havia se mudara em escuridão; e Deus a abandonara às suas próprias paixões desenfreadas. Daqui se percebe a erupção de um pessimismo pungente na mente de Paulo mas que não se deixa derrotar pela realidade mas que se abre ao panorama da esperança.

2. As atrocidades do mundo
A primeira premissa básica constata, segundo Rm 8,18-25, que «O universo inteiro está gemendo e sofrendo as dores do parto. Está cheio de sofrimento e submetido à caducidade» (Rm 8,22), razão pela qual Dodd coloca esta visão de Paulo nos quadros do pessimismo oriental. Contudo, Paulo elucida que há no mundo uma ansiosa expectativa. Portanto, o universo espera com muita perseverança a libertação final da escravidão à futilidade e que dará um sentido às suas angústias.
A existência encontra-se neste paradoxo entre a tristeza e a abertura alegre à esperança, submetida à caducidade, mas salvo pela esperança; agora no parto, mas destinado à glória (Rm 8,20-21). É uma visão do mundo, em movimento e desenvolvimento, que muito bem se compactua com a perspectiva moderna. De facto, nós também sentimos hoje “a pungente realidade da dor e do fracasso”, parecendo que a existência humana é um absurdo e, que, todavia, se abre a uma graça libertadora que flui sem nos darmos conta disso.
A nossa realidade existencial mergulhada no crescente “materialismo prático” leva-nos à tentação de considerar que “o homem é parte da natureza”, ou seja, situá-lo longe da perspectiva histórico-transcendental aquela que nos conduz à esperança gloriosa da libertação final. Na maior parte a acção do homem sobre o mundo parece desarrazoada e de valor duvidoso. Deste modo, precisamos de conjugar relações justas e directas com Deus e com os homens nossos semelhantes. Aliás, «Paulo julgava que, de algum modo, o universo aguardava a intervenção do homem, para atingir, por seu intermédio, relações correctas e justas na esfera espiritual: “esperando pela revelação dos filhos de Deus” (Rm 8,19)». Como se pode ver, Paulo mostra que o mundo é tal e qual o vemos não por acidente mas devido à estruturação das relações humanas. É por isso que quando atacava o que estava errado na sociedade humana, acreditava firmemente estar atacando o problema do universo.

3. Esperança optimista do mundo
É nesse tom veemente que Paulo investe, na sua Carta aos Romanos, contra a corrupção do mundo pagão. Paulo se volta contra eles, com a acusação de que, com melhores conhecimentos, não haviam sido melhores (cf. Rm 2,1-11). Face à corrupção em que o mundo se encontra, Paulo ilustra que da parte do homem, uma confiança singela em Deus dá plena liberdade de acção ao desígnio divino. O desfecho da história do passado, como ele o via, pode ser posto nestes termos: no mundo pagão, alguns indivíduos isolados que cumprem, até certo ponto, a vontade de Deus tal como lhes é revelada na consciência, mas incapazes de formarem uma comunidade verdadeira; os profetas haviam sempre previsto que essa idade seria sucedida por outra, em que a vida espontânea e livre do Espírito criaria uma sociedade de âmbito mundial ou reino de Deus.
Numa releitura da perícopa de Rm 8,18-25 à luz do acontecimento de Damasco chegámos a concluir que Paulo faz também uma avaliação sombria da vida humana tal como se nos apresenta, resgatada do pessimismo por uma formidável fé naquilo em que se pode transformar. Assim, quando passou a olhar o mundo com os olhos de Cristo, o seu interesse se transformou de condenação e desespero em esperança gloriosa e libertadora.
Com a ressurreição de Cristo, afirmava Paulo, deu-se início a novidade tão esperada. O herdeiro atingiu a idade adulta; a luz opaca de uma esperança sempre diferida cedera lugar à clara alvorada do dia. Tanto do seio de Israel como do seio do mundo pagão, Deus estava conclamando os seus filhos a uma verdadeira vida comunitária, mediante a qual o mundo haveria de salvar-se. É este o “arcano, por tantos séculos mantido em silêncio, mas agora manifestado” (Rm 16,25-26).
O drama histórico da morte e ressurreição de Cristo lançara clara luz sobre os ocultos desígnios de Deus, unindo os homens fiéis, de todas as nações e classes, em uma firme comunidade livre e poderosa para executar a vontade de Deus. Assim começara a nova era. Essa é uma crença fundamental de todos os cristãos primitivos. Sabiam que eram os novos habitantes de um novo mundo. Tinham plena certeza de que forças novas haviam entrado neles, e que o desígnio divino estava, mediante os seus esforços, abrindo caminho para atingir o mundo à larga. E embora soubessem que viviam numa crise histórica, com sofrimento, creram sustentados e animados por uma viva esperança à qual nada parecia bom demais para ser verdade. Essa esperança se vestiu de uma estranha representação apocalítpica. A princípio, certamente esperava que em breve Cristo haveria de voltar visivelmente, e conduzir o seu povo em uma agressiva campanha contra todo mal.


Conclusão
Para traçarmos pequenos traços conclusivos, vimos que para Paulo, o tempo em que vivia era o momento decisivo da história; marcado por desespero e ao mesmo instante aberto à esperança. Antes de Cristo, a desintegração da humanidade, e a gradual selecção do pequeno resto, investindo da missão de levar adiante o plano de Deus. A partir da vinda de Cristo, regista-se a reintegração da raça, a inclusão de todos (sem acepção de pessoas), passo a passo, dos rejeitados e a obtenção da unidade final para tudo o que existe, na soberania levada à sua perfeição definitiva ou reino de Deus. Encontramos nestas breves linhas um desafio enorme como cristãos, num mundo cheio de atrocidades que levam a divisões precisamos de empreender muito esforço confiando na poderosa força de Deus para que possamos “integrar todas as coisas em Cristo” (Cl 1,17-29).

A VIDA DE SÃO PAULO

Resumo do Cap. 1 (pp. 13-37), sobre A VIDA DE PAULO, da obra de BOCH, Jordi Sanchez, Escritos Paulinos, Vol. 7, Ave Maria, S. Paulo 20022.

Introdução
No presente trabalho pretendemos fazer um resumo do Capítulo sobre “A vida de Paulo”. Este tema, na obra em referência, é antecedido por um grande título: “Paulo e suas cartas”, razão pela qual falaremos também um pouco sobre as cartas autênticas do Apóstolo dos gentios; aquelas que constituem a primeira fonte para falarmos adequadamente de Paulo e da qual se subordina o livro dos Actos dos Apóstolos. Assim, teremos como subtítulos auxiliares do nosso tema: as cartas autênticas de Paulo, a vida e o apostolado de Paulo, a conversão de Paulo, a primeira viagem de Paulo, o “Concílio” de Jerusalém e o incidente de Antioquia e, por fim, falaremos do fim da vida de Paulo.

1.      A VIDA DE PAULO
A partir da leitura bem atenta deste Capítulo é possível perceber que o Apóstolo Paulo nos é conhecido por suas cartas e pelos Actos dos Apóstolos que são duas fontes imprescindíveis que apesar de serem independentes, se confirmam e se completam, não obstante algumas divergências em pormenores. E é no estudo comparado dessas fontes que BOCH nos permitiu estabelecer os dados minimamente correctos da vida de Paulo que passamos a apresentar.

1.1 As cartas autênticas de Paulo
A maioria dos exegetas considera como cartas autênticas de Paulo pelo menos sete cartas das que figuram sob o nome de Paulo, nomeadamente: a Carta aos Gálatas, a Carta aos Romanos, a Primeira e Segunda Carta aos Coríntios, a Carta aos Filipenses, a Primeira Carta aos Tessalonicenses e a Carta a Filêmon. De facto, encontramos nelas uma personalidade bem definida de Paulo e a vontade de apresentar semelhanças constantes que, embora figurem nas outras cartas, são consideradas como “imitações de um modelo preexistente”.

1.2 A vida e o apostolado de Paulo
Como se sabe, Paulo nasceu em Tarso da Cilícia, em uma família de fiéis observantes da lei. Ele foi judeu da tribo de Benjamim e, ao mesmo tempo, cidadão romano. A sua genealogia e sua rápida agregação à lei aparecem em Fl 3,5 onde se nos atesta: «circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus; quanto à lei, fariseu». Não obstante a diversidade de dados históricos, a tradição seguida por muitos coloca a morte de Paulo depois do ano 64, ano do incêndio de Roma seguido pela primeira grande perseguição aos cristãos por parte de Nero.
Enquanto os Actos dos Apóstolos só se referem ao nome Saul (9,4.17;22,7.13) e de Saulo (7,58; 8,1.3;9,22.24) as cartas nos transmitem o único nome de Paulo. Ademais, discute-se bastante sobre os possíveis estudos de Paulo em Jerusalém. Nos Actos dos Apóstolos 22,3 é possível entrever que “Paulo foi educado na acurada observância da lei aos pés do célebre rabino Gamaliel”. Entrementes, muitos estudiosos acreditam que na realidade o apóstolo não estudou em Jerusalém, sem excluir a possibilidade de tê-la visitado. Pois, «uma longa permanência em Jerusalém, realizando estudos primários e superiores (de rabinismo), teria implicado conhecer Cristo durante o seu ministério ou receber algum impacto directo de sua paixão».
Conforme Gl 1,13 Paulo perseguiu a Igreja de Deus movido pelo zelo das tradições paternas, ou seja, levado pela preocupação de manter a identidade judaica. Porque Paulo teria “percebido o cristianismo nascente como uma enorme relativização da lei”.
De antemão, importa salientar que não existe unanimidade sobre o marco do apostolado de Paulo. Contudo, a opinião mais provável considera que o apostolado de Paulo desenvolveu-se entre os anos 30 e 50/60 d.C. O marco cronológico de sua vida foi elaborado relacionando dados da história geral com os dados apresentados nas cartas e nos Actos dos Apóstolos.

1.3 A conversão de Paulo
Como dissemos antes, no princípio Paulo foi perseguidor implacável da Igreja cristã (Gl 1,13; Fl 3,6) e implicado no assassinato de Estêvão (Act 7,58;22,20;26,10), teve uma conversão súbita, no caminho de Damasco, devido à aparição de Jesus ressuscitado, que, ao lhe manifestar a verdade da fé cristã, indicou-lhe sua missão especial de Apóstolo dos gentios (Act 9,3-19; Gl 12.15; Ef 3,2). A partir desse instante ele vai consagrar toda a sua vida ao serviço de Cristo que o “conquistou” (Fl 3,12), porque Paulo percebera por revelação que só em Cristo está a salvação. Este zelo incondicional traduz-se por uma vida de abnegação total ao serviço daquele que ele ama. De facto, em virtude do acontecimento de Damasco, “Paulo irá sentir-se investido de uma autoridade que o colocará à altura dos grandes apóstolos com o máximo poder sobre os seus fiéis”. E muitos autores consideram que Paulo chegou a ser Apóstolo “por via carismática”, a razão de ter visões e ouvir palavras (1Cor 1,9). Aliás, é própria de uma comunicação directa a ideia de que Deus lhe revelava “Seu Filho” e lhe pedia que o anunciasse entre os gentios (Gl 1,15-17).

1.4 A primeira viagem de Paulo
A primeira viagem de Paulo, diferentemente da segunda e da terceira viagens, não encontra reflexo directo nas cartas incontestáveis de Paulo. Devido aos pormenores descritos nos Actos dos Apóstolos, em linhas gerais e com as oportunas ressalvas, os estudiosos costumam aceitar essa viagem como histórica. Nesta primeira missão apostólica, Paulo anuncia o Evangelho em Chipre, Panfília, Pisídia e Licaônia (Act 13-14). Tanto na primeira como nas duas outras o esquema é quase o mesmo: pregação na sinagoga, um certo êxito, perseguição por causa de alguns judeus vindos de fora e partida.

1.5 O “Concílio” de Jerusalém e o incidente de Antioquia
É tradicionalmente aceite pela maioria dos estudiosos que o chamado “Concílio” de Jerusalém aconteceu, provavelmente, entre a primeira e a segunda viagens de Paulo. O problema central abordado neste “Concílio” foi o da incorporação dos gentios à Igreja. Então, ficou decidido, sob a influência de Paulo, que a Lei judaica não obrigaria os cristãos convertidos do paganismo (Act 15; Gl 2,3-6); ao mesmo tempo, a missão de Paulo como Apóstolo dos gentios é oficialmente reconhecida (Gl 2,7-9).
No que concerne ao incidente de Antioquia, há várias maneiras de abordar as respectivas causas e consequências que motivaram a briga entre Pedro e Paulo. Porém, muitos autores consideram que Pedro obrigava os gentios a viverem como judeus (Gl 2,14b) violando os acordos estabelecidos por todos em unanimidade. E isto é discordado severamente por Paulo. Como consequências do incidente: a convivência não é salutar. No entanto, não deixavam de sentar-se à mesa com todos (1Cor 11,18-20). Tudo indica que o próprio Tiago mudou de atitude. Como solução do problema da convivência, ele propunha as prescrições que se conhecem como “decreto apostólico” (Act 15,20-29), sem violar em nada a lei de Moisés.
1.6 O fim da vida de Paulo
A partir do instante em que o Apóstolo chega a Jerusalém pela última vez, dado foi pela primeira vez três anos depois da sua conversão, quando resolveu ir visitar Pedro em Jerusalém (Gl 1,18) e na altura havia em Jerusalém entre os apóstolos apenas Pedro e Tiago, a narrativa dos Actos dos Apóstolos multiplica os paralelismos entre a paixão de Paulo e a de Cristo. Talvez devido ao comparecimento de Paulo perante o Sinédrio (Act 22,30), o qual desejaria condená-lo à morte, mas teve de entregá-lo à autoridade romana (Act 23,10), a qual, como no caso de Jesus, não encontrou culpa nele (v. 29; 26,31;28,18).
Embora haja diversas opiniões sobre o fim de Paulo, fica claro que o Apóstolo morreu em Roma na época de Nero. Mas não se sabe de concreto se ali foi rapidamente julgado e condenado à morte, ou então, se, depois de dois anos de prisão domiciliária (Act 28,30) foi libertado e teve a oportunidade de cumprir o seu plano de evangelização na península hispânica (Rm 15,24.28).

Conclusão
A tradição conservou para São Paulo o título que ele reivindicava: “Apóstolo dos gentios”. Judeu ou grego, continuava sendo escravo de Cristo, livre de toda sujeição humana nesta esta escravidão divina (1Cor 9,20-23). No que tange à sua conversão, Paulo recebeu um “apocalipse” do Filho de Deus, viu o Filho de Deus na glória. E é neste apocalipse que podemos situar a vida de Paulo pois ele recebeu desta visão uma impressão profunda, quase no sentido próprio: ela se “imprimiu” nele para sempre. Em virtude de sua vocação, Paulo estará a frente do cortejo dos chamados à salvação cristã. Não só o alcance de sua missão de apóstolo dos gentios se manifestou gradualmente ao espírito de Paulo, mas revelações sucessivas sem dúvida influenciaram seu método de apóstolo. Aliás, a harmonia de sua doutrina e vida com os ensinamentos de Jesus esclarece a hipótese de que ele pôde pressentir, desde a visão inaugural de sua missão, que era escolhido para acabar de executar a obra do Servo de Deus e levar a luz aos pagãos.

CARACTERISTICAS DA JUSTIÇA

O caminho da Igreja é o homem, porque Cristo se uniu a cada homem. E cada homem merece tudo quanto condiz com a sua dignidade. Razão pela qual a justiça lhe aparece como condição obrigatória, determinante e da qual deve ser restituída ou compensada quando lhe é tirada. Por isso, este labor tenciona apresentar de forma sucinta o que constituem as características principais da justiça. Se quisermos ser mais concretos falaremos da Obrigatoriedade, Determinabilidade e Restituição-compensação. Esta última característica é o acto da justiça comutativa tal como ela se realiza sobretudo no conjunto de interesses contratuais da vida quotidiana.

  1. OBRIGATORIEDADE
A justiça, como diz o Papa Bento VXI, obriga a «dar o seu a seu dono – ius suum unicuique tribuire»[1]. Portanto, a justiça induz a dar ao outro o que é dele, o que lhe pertence em razão do seu ser e agir porque «A justiça é o primeiro caminho da caridade. Igualmente, ela exige o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos»[2]. E de acordo com o princípio da subsidiariedade «nem o Estado nem qualquer sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e dos corpos intermédios»[3]. Deste modo, cabe à esfera política construir na medida do possível uma ordem social justa e, por isso, fazer justiça aos povos.
A obrigatoriedade da justiça «nasce do direito natural, que obriga o legislador a promulgar leis postuladas pelo bem comum que exige obediência dos cidadãos às leis»[4]. O direito natural contém as normas básicas, supremas, gerais, atemporais e sempre válidas, resultantes da natureza humana e, exactamente por isso, tão importantes para a ordem jurídica e a construção da justiça. Porque resulta da natureza humana, idêntica em todos os homens, o direito natural, isto é, a justiça obriga a todos. Característica própria da justiça é o predomínio da objectividade, pois ela é medida pela ordem objectiva representada pela coisa devida. Precisando mais, «o objectivo da justiça é o debitum. Em sentido estrito ou rigoroso é algo cujo cumprimento pode ser legalmente imposto e reclamado por alguém»[5]. Ademais, é importante sublinharmos que a obrigatoriedade da justiça se realiza em três níveis[6]:
a) Antropológico: porque o homem concretamente é «um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais, políticos e económicos» (cf. EN 31).
b) Teológico: porque «não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro abrangem as situações bem concretas da injustiça que há-de ser combatida e da justiça a ser restaurada» (EN 31).
c) Evangélico: porque «a libertação humana continua sendo um projecto simplesmente temporal com objectivos de uma perspectiva antropocêntrica, de bem-estar material e com actividades de ordem política ou social» (EN 32).

  1. DETERMINABILIDADE
A justiça é algo que pressupõe o direito (ius suum). A razão profunda pela qual algo se deve ao homem como direito é a sua própria natureza humana, a sua condição de pessoa, ou, mais radicalmente, «o fundamento absoluto do direito e do dever determinabilista da justiça está na pessoa humana como criatura divina»[7]. Portanto, aquela justiça que nasce de uma visão de fé, que se fundamenta no Evangelho, não é alheia à evangelização. Por isso a justiça é determinante porque:
ü Não é alheia ao Evangelho que pertence a um dos seus conteúdos essenciais, a integração entre a vida humana pessoal e social com o Evangelho; bem como ela não é alheia devido ao vínculo antropológico: o homem que recebe o Evangelho quer viver na justiça;
ü Não é alheia devido à redenção, porque esta chega até à injustiça que deve ser combatida e à justiça que deve ser restaurada; portanto, o amor não pode ser anunciado sem se promover a paz e a justiça. Enfim, a justiça não é alheia porque «todo o esforço que se fizer para realizar a justiça na sociedade humana inclui-se na libertação integral de Cristo que aperfeiçoa e supera o trabalho humano, suas metas e aspirações, dando-lhes um sentido integral e absoluto»[8]. De facto, a justiça, Ela é determinante porque não pode ser ab-rogada nem modificada muito menos enfraquecida por privilégios e dispensas singulares, é inadiável.

3.      RESTITUIÇÃO-COMPENSAÇÃO
Infelizmente, a nossa realidade não pode deixar de ter em conta o montante de injustiças causadas pela divisão do mundo em dois blocos ideológicos. Deste modo, Paulo VI aponta a exigência da justiça, como algo de intrínseco e unido à ideia de desenvolvimento[9]. Deste modo, a sociologia cristã vê na justiça uma virtude, a saber, uma atitude moral «por força da qual, mercê de uma vontade firme e perseverante se atribui a cada qual o que é seu»[10]. Quem pratica a justiça não procura o seu próprio direito, mas dá e deixa aos outros o que é deles. Por outro lado, a justiça supõe o direito, em primeiro lugar, o direito natural, do qual recebe o sentido e a eficácia. Daí se conclui que na justiça devem aflorar as três propriedades do direito: a polarização para o outro, o rigor do dever e de receber e a exacta proporção entre ambos. Onde faltar, mesmo que por imperfeição, uma destas qualidades, já não será mais a justiça responsável.
A justiça é caracterizada pela restituição-compensação porque ela é a grande organizadora da vida comunitária dos homens. Assim, onde os parceiros iguais se encontram no mesmo plano, o vigor à justiça comutativa, ou seja, que regula a relação dos indivíduos entre si, a sua transgressão cria um estado de injustiça que exige reparação externa. Pois estamos cientes que deve antes, ser actuado o critério de que existe realmente algo que pertence inalienavelmente a cada um, porque o homem, enquanto pessoa, foi criado por Deus. Aliás, como ilustra Kant «nós temos um governante santo, e o que de santo ele deu ao homem é direito do homem». Isto realça que pelo próprio facto da existência de alguém, algo lhe compete como seu. É significativo o facto de ter Tomás de Aquino, no seu tratado sobre a justiça, chamado meramente com o nome de “restituição” o acto de justiça comutativa. Quer-se dar claramente a entender que a situação de verdadeiro equilíbrio não se pode conseguir de uma vez por todas na comunidade humana, mas deverá ser realizada num processo indefinido de constante acomodação de uma ordem sempre turbada desde o início. Daí que tanto o amor quanto a justiça «Ambos são a irradiação do mesmo espírito de Deus, programa e garantia da dignidade do espírito humano» (Pio XII)[11].
Por outro lado, se nos ativermos ao acento que Paulo VI dá ao tema da justiça social como conteúdo da evangelização, o vemos incluído dentro de quatro conteúdos essenciais: o testemunho do amor do Pai, a realização da salvação em Jesus Cristo, o anúncio da vida futura e a interpelação da vida presente. A «interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social» exige que a evangelização leve consigo «uma mensagem explícita, adaptada às diversas situações e continuamente actualizada sobre os direitos e deveres de toda a pessoa humana e sobre a vida familiar (…), sobre a vida em comum na sociedade» (Evangelii Nuntiandi 29).

Conclusão
É chegada a hora de um breve balanço. Tudo indica que não nos é permitido omitir a justiça entre os humanos por imposição de sua própria natureza. De facto, como nos diz o Sínodo dos Bispos de 1971 «trabalhar pela justiça e participar na transformação do mundo, faz parte integrante do anúncio do evangelho, isto é, da missão da Igreja que trabalha pela redenção do género humano e libertação da opressão». Portanto, a defesa dos direitos fundamentais do homem, por parte da Igreja, é uma exigência da sua missão de justiça e de amor. Destarte, a obrigatoriedade, a determinabilidade e a restituição-compensação abordámo-las como “calcanhar de Aquiles” matriz que caracteriza a justiça social. Enfim, importa salientar que cabe à esfera política construir na medida do possível uma ordem social justa e, por isso, fazer justiça aos povos fundamentando a acção política nessas características.

BIBLIOGRAFIA
ANTONCICH Ricardo, José Miguel M. SANS, Ensino social da Igreja, Ed. Vozes, Lima 1986.
Bento XVI, Exort. Apost. Africae Munus, LEV, Vaticano 2011.
Bento XVI, Cart. Enc. Caritas in Veritate, LEV, Vaticano 2005.
Catecismo da Igreja Católica, Gráfica de Coimbra, Coimbra 1993.
CHORÃO Mário Bigote, Justiça in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Ed. Verbo, Lisboa/São Paulo, 1985.
HOEFFNER, J. C., Doutrina Social Cristã, Ed. Loyola, São Paulo 1986.
João Paulo II, Cart. Enc. Sollicitudo Rei Socialis, Ed. Paulistas, Lisboa 1987.
Paulo VI, Exort. Apost., Evangelii Nuntiandi, LEV, Vaticano 1967.
Tomás de Aquino, Summa Theol. II, q. 11, a 58, 1.


[1] Bento XVI, Exort. Apost. Africae Munus, 24, LEV, Vaticano 2011.
[2] Bento XVI, Cart. Enc. Caritas in Veritate, 6, LEV, Vaticano 2005.
[3] CIC, Gráfica de Coimbra, Coimbra 1993, 1894.
[4] J. C. HOEFFNER, Doutrina Social Cristã, Ed. Loyola, São Paulo 1986, 46.
[5] Mário Bigote CHORÃO, Justiça in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Ed. Verbo, Lisboa/São Paulo, 1985, 912; cf. S. Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, Lib. II, Cap. 28.
[6] Ricardo ANTONCICH, José Miguel M. SANS, Ensino social da Igreja, Ed. Vozes, Lima 1986, 266.
[7] Mário Bigote CHORÃO, cit., 916.
[8] Ricardo ANTONCICH, José Miguel M. SANS, cit, 268.
[9] Cf. João Paulo II, Cart. Enc. Sollicitudo Rei Socialis, 10, Ed. Paulistas, Lisboa 1987.
[10] Tomás de Aquino, Summa Theol. II, q. 11, a 58, 1.
[11] J. C. HOEFFNER, cit., 54.

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