terça-feira, 22 de março de 2011

A CULTURA MOÇAMBICANA, UTOPIA OU REALIDADE?

PREFÁCIO

Antes de arreigar a brasa que adoça o apetite já latente no nosso palato no tocante ao tema do qual nos propomos discutir, é extremamente importante denotar que o fenómeno cultural em suas bases fundamentais carece de quaisquer restrições abrangentes. Melhor, não se pode intentar procurar o universal no particular senão o contrário pois “o todo é a soma das partes”. No caso corpóreo do nosso assunto, este teorema lógico não tem aplicação aristotélica. Portanto, o que se deve ousar compreender é o universo cultural dos povos moçambicanos sem, no entanto, agrupá-las numa única cultura supostamente moçambicana, para ulteriormente tanger as particularidades e diferenciações que enriquecem a multifacetada manifestação cultural dos povos de Moçambique.

As várias tendências humanas e intelectualistas em considerar e valorar dada prática cultural ou artística como expressão do todo das culturas moçambicanas não passa de um mero “flactus vocis” para entontecer mentes “ilúcidas” e adormecidas. Perante ditos do género, urge relembrar Karl Popper na sua teoria da falseabilidade das teorias científicas segundo a qual “uma dada asserção é falseável ou refutável”. Por exemplo, afirmar que o saudoso artista plástico Malangatana é ícone da cultura moçambicana é falso na medida em que a leitura, temerária, feita a partir das suas representações e criações artísticas não sumariza a globalidade dos moçambicanos se tivermos em conta o contexto cultural, histórico e temporal em que viveu o autor. Pois, cada criador e pensador de uma dada referência pensamental logra os frutos do seu tecido social.

Lembremos igualmente que “o homem é um nó de pulsões e relações” como diria A. De Saint-Exupery. Realmente, o homem concreto é um nó de relações voltado para todas as direcções, até para o além, para o ilimitado da sua imaginação. Entrementes, isto não justifica que seja admissível que abordando um certo tema queira-se abordar na sua globalidade envolvendo as generalizações passíveis de toda espécie de quedas académicas. Nem tão pouco se julgue acertado uso indevido da proposição aristotélica que examina que o homem, pelo pensamento, é de alguma forma, todas as coisas. Ele não está fixado neste ou naquele objecto, mas na totalidade dos objectos. Ele não se contenta com os entes. Quer o ser, fundamento de todos os entes. Por causa disso, é um permanente desertor de tudo o que é limitado e um eterno protestante e contestador, em oposição ao animal.

Outrossim, fica aqui impresso que situado num mundo global e univocamente imperfeito, “o homem é projecção e tendência para sempre mais, para a surpresa que está fora de sua previsão, para um incógnito, para o novum, para o ainda-não. O melhor é sempre apenas um esboço” (Leonardo BOFF, 19743, p. 19). Isto talvez queira provar-nos que a abertura do homem para o além leva consigo tudo que o caracteriza enquanto ser cultural de maneiras que dentro de povos culturalmente diferentes não se pode dar uma definição acabada desse povo. Aliás, em Moçambique temos uma imensidade de línguas e idiomas que não permite uma delimitação cultural unificadora embora os gestos e as articulações populares tendam a uni-diversificar-se cada vez mais. Assim, como defendera um autor anónimo no Jornal Zambeze (5ª feira, 03.03.2011), «está-se na língua como na cultura». Cá está aquilo que dá interesse sociológico: a linguagem. Na verdade, a linguagem ajuda-nos a analisar os significados, as conversas, a entender a construção social da realidade, a formação das identidades, a socialização, etc. Portanto, a linguagem não só estrutura o social como dá-lhe significado através dos conceitos ou do diálogo que é intermediado por essas concepções, que são por natureza, culturalmente enraizados. «A linguagem performa maneiras de pensar, de sentir e agir dos indivíduos.

Cada vez mais as culturas estão num processo ininterrupto de nascimento por isso, no é suficiente especular que enquanto homens moçambicanos estamos ainda nascendo. Ainda não atingimos os patamares da personalidade cultural moçambicana. Assim, tudo quanto seja da cultura moçambicana é promessa e, logicamente, utópico. O ponto de chegada é de novo ponto de partida. Daí é que tudo ainda se atina encetado. Isto mostra-nos que o homem não possui o centro em si mesmo, mas fora dele numa transcendência. Vive sua vida como ex-istência. É um ser assintórico sempre a caminho de si mesmo sem se reencontrar nunca e sem finalizar o pacto cultural de que é autor involuntário.

Na realidade, o homem é uma abertura indefinida, presa nas estreitezas de uma concretização que não o exaure; é a tensão entre uma tendência absoluta e uma tendência inadequadamente realizada. Daí para alcançar a falsa ideia de unidade cria-se a ideologia de cultura moçambicana incapaz de fruir o eco cacofónico que daí irrompe num tom ruidoso. Como afirmei antes, falar de uma possível cultura moçambicana em Moçambique, não passa de um mero idealismo utópico. Dois pressupostos sustentam essa tese: primeiro, em Moçambique fala-se da unidade linguística do povo mas grande parte do mesmo vive e morre incomunicável e ignoto um do outro; segundo, maior parte do povo moçambicano é, em parte, praticante de suas respectivas tradições e, ao mesmo tempo, apaixonado pelo além das influências multiculturais quotidianas, ao que chamo de prostituição cultural. Uma minoria do povo que se acha falante da língua de Camões e, portanto, oriunda de cultura ocidental ou outra cultura anónima se filia na massa dos que se mergulham na lamúria pensamental. Afinal, quem é que ainda não se sentiu perdido na sua própria cultura e em manifestações culturais do seu povo, da sua tribo e etnia? Então esse desconhece-se a si mesmo e precisa de desvelar-se, erguer o olhar começar uma nova marcha à busca da sua identidade cultural, que não é moçambicana mas própria da sua cultura seja qual for.

Ora, em que medida falar de cultura moçambicana é utopia? Em duas perspectivas: primeira: enquanto fantasia e criação intelectual e, em segundo plano, enquanto ansiedade pela augurada unidade deste povo que vagueia no mar de lágrimas políticas e sofismas partidários paradoxais e antagónicos. Como se sabe, a utopia desempenha um papel insubstituível dentro da história humana. Pela utopia projectam-se no futuro todos os dinamismos e anseios humanos, totalmente depurados dos elementos limitatórios e ambíguos e plenamente realizados. Como disse, a utopia não é sinónimo de fantasia. A fantasia é uma das formas como se exprime a utopia e o princípio-esperança. A utopia manifesta a permanente ânsia de renovação, regeneração e aperfeiçoamento buscados pelo homem. Ela não parte do nada. Parte duma experiência e anseio humanos. Tanto, como diria BOFF «o céu anunciado pela fé cristã situa-se no horizonte da compreensão utópica: é a absoluta e radical realização de tudo o que é verdadeiramente humano, dentro de Deus» (Ibidem, p. 20). Por isso, apraz-me asseverar que a cultura moçambicana é a aspiração que os intelectuais têm e infligem no povo como manancial para unificar e enformar um todo indissociável enraizado numa diferenciação unificadora. Trata-se de um futuro meta-histórico que por isso transcende a história e a sua realização é um vir-a-ser incógnito. É o cerne da realização ontológico-histórico dos anseios humanos velados por uma realidade candente e em permanente contingência. Então convém que sonhemos acordados que há em Moçambique e entre os moçambicanos uma cultura moçambicana.

No próximo artigo falaremos da diversidade e expressão de algumas manifestações dos povos que vivem em Moçambique. Todos somos chamados à abraçar esta utopia com um olhar criticista. Trata-se de um lançar-se fora dos paradigmas e estruturas comuns.

2 comentários:

  1. odiei o prefácil exageradamente grande.:p

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  2. Olá Cantífula De Castro,
    tenho uma pergunta:
    Para si, existe uma identidade mocambicana? Parece que nao se entendi bem o texto. Mas podia, por favor, responder àquela questao brevemente considerando também o papel das identidades locais (p. ex. do povo changana, macua, rhonga etc.)? É assim que tento perceber o que significa ser mocambicano. Se acha que nao existe uma identidade mocambicana, deve ser interessante quais sao as razoes pelas quais pensa assim.
    Muito obrigada.
    Até breve.

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