sexta-feira, 1 de outubro de 2010

JESUS, O PROFETA

INTRODUÇÃO
Vendo a acção de Jesus, o povo de Israel e os discípulos disseram que Ele era um profeta (Lc 7,16.39). O próprio Jesus comparou-se explicitamente a um profeta «...não convém que um profeta pereça fora de Jerusalém» (Lc 13,33; Mt 13,57). Eis porque neste trabalho tencionamos falar de Jesus, o profeta.
A actuação de Jesus neste mundo inscreve-se numa linha de continuidade com os profetas. As pessoas reconheceram nele um profeta. Isso quer dizer que seu modo de agir, pelo menos em grande parte, era semelhante ao modo de agir de um profeta.
Jesus não apareceu como um fenómeno totalmente novo, sem raízes na humanidade. Sendo radicalmente novo, quis ser compreendido pelo povo pobre e sincero de Israel. Por isso, Deus enviou uma longa série de profetas para que preparassem sua vinda. Esses profetas prepararam seu caminho, criando condições para sua aceitação e reconhecimento por parte dos pobres de Israel. Assim, para compreender quem é Jesus devemos partir do modo de agir de Deus, ou seja, a partir de sua acção profética para ver como Jesus foi mais que um profeta e agiu para além de todos os profetas. Note-se também que Jesus seguiu os passos de João Baptista, o último e maior dos profetas, para em seguida ultrapassá-lo como nos atesta o texto de S. Lucas «Então que foste ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais do que profeta» (Lc 7,26).
Para compreender o sentido da actuação profética de Jesus, devemos voltar ao Antigo Testamento e ver o que foram os profetas, isto é, o que eles fizeram e como o povo entendeu a sua acção. Ao cabo, descobriremos que Ele é o mediador e a plenitude do profetismo. Todavia, para realizar este objectivo obedeceremos o seguinte esquema laboral:
 
1. Definição do termo profeta
2. O papel de um profeta
3. As profecias messiânicas
4. O agir profético de Jesus
5. Os actos proféticos de Jesus
6. Jesus, o profeta que inaugura o Reino de Deus
7. Jesus, o profeta à luz do Novo Testamento
8. Apreciação crítica
Conclusão
Bibliografia

 
QUEM DIZEM OS HOMENS QUE EU SOU?
«Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesaréia de Filipe, e no caminho, perguntou-lhes: “Quem dizem os homens que eu sou?” Eles responderam: “João Baptista, outros, Elias; outros ainda, um dos profetas”. “E vós, perguntou Ele, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Cristo”. Então proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito» (Mc 8,27-30).
Quando olhamos ao que os discípulos disseram de Jesus, notamos que, embora pregassem o mesmo e único Evangelho de Jesus Cristo, o apresentavam de maneiras diferentes. Aliás, é por isso que temos quatro Evangelhos. Isto é próprio de um mistério. De facto, a pessoa e ministério de Jesus são inesgotáveis.
Uma análise à pergunta de Jesus “Quem dizem os homens que eu sou?” parece transparecer-se respostas intermináveis que até aos nossos dias se fazem sentir. À luz da resposta de Pedro em Mt 16,17, Jesus declara que para o conhecimento da sua personalidade, não basta a carne e o sangue, é preciso a ajuda do Pai que está nos céus. Só o Pai é que nos revela plenamente o Seu Filho «Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo» (Mt 3,17b). Ninguém pode falar de um mistério por si só e de única maneira pois, «A inteligência humana não pode compreender de uma única vez um mistério, mas de cada vez alguma coisa nova é descoberta. Nem todos os homens juntos podem esgotar o mistério de Jesus Cristo; o que hoje todos conhecemos d’Ele é o que a nossa inteligência é capaz hoje de conhecer de Jesus Cristo» . Ainda há muito por saber e conhecer de Jesus Cristo porque «Jamais acabaremos de sondar o abismo deste mistério» .
Esta questão até hoje tem tido diversas perspectivas de respostas. Mas neste trabalho e nas linhas que se seguem pretendemos ver em que medida se pode falar de Jesus enquanto profeta. Desde já adiantamos a nossa limitação face ao tema em causa. Daí que não iremos esgotá-lo, mas na medida do possível iremos traçar aspectos que caracterizam Jesus, o profeta que é também o Messias.
1. DEFINIÇÃO DO TERMO PROFETA
Nesta parte delimitadora do termo que queremos analisar, apresentamos vários posicionamentos sobre o que seja o perfil de um profeta.
Do grego Προφητης. Da raiz, pro que significa em vez de, antes de. Indica o homem que faz predições; que é vidente e inspirado. Portanto, aquele que fala em vez de outro, o que fala em vez de Deus . O profeta é aquele que é chamado, pondo em realce a sua vocação e o seu chamamento por parte da divindade. Isto é, «O nabi é aquele que actua sob a influência do Espírito, proclamando a mensagem que recebeu» .
Por outro lado, este termo indica «O indivíduo que promove o culto e a palavra de Deus, alegando possuir o dom da predição das coisas futuras por inspiração» . Pode indicar também, o homem que fala em nome de Deus para dar a conhecer as Suas vontades . «No sentido grego da palavra e do linguajar bíblico, o profeta não é tanto provisor do futuro, ao invés, órgão e portador, intérprete e proclamador da revelação divina» .
Fundamentalmente, vemos que o profeta é a pessoa que vem em nome de Deus para conduzir o seu povo; é a pessoa que vem denunciar os desvios do povo e os vícios de seus chefes e pastores, recordar a verdadeira lei do verdadeiro Deus e anunciar o juízo de Deus sobre o seu próprio povo e sobre todos os povos.
a) De forma sucinta
Embora os conceitos já apresentados não tenham, concretamente, alusão a Cristo, é dado de facto que os profetas eram escolhidos com vista a Cristo, que é o profeta e o único mediador entre Deus e os homens. De um lado, pode-se dizer que é impossível compreender bem os textos bíblicos referentes a Cristo sem conhecermos a história profética de Israel. De outro lado, é igualmente verdade, que se pode compreender plenamente o papel dos profetas somente com vistas a Cristo e sob a sua luz. Pois, «Toda a vida que precede a vinda de Cristo é catecumenato da humanidade e os profetas são as testemunhas e os artífices deste catecumenato da humanidade» .
 
2. O PAPEL DE UM PROFETA
Os profetas representam, no meio do povo eleito um papel difícil, às vezes trágico, mas igualmente privilegiado; na história da salvação prefiguram o profeta, Cristo, cujo caminho preparam e do qual são arautos.

2.1. Os profetas são escolhidos e enviados por Deus
O elemento constitutivo da experiência profética é a experiência de ser cada um eleito, escolhido, tomado e enviado pelo próprio Deus. Os profetas falam em nome de Deus como apontámos antes. E, partindo da experiência de serem chamados por Ele a se converterem, para se transformarem em instrumentos dentro da história da salvação, vêem-se impelidos a cumprir sua difícil tarefa. Assim, «As palavras do profeta procedem do coração de Deus, estão inscritas no seu coração e, por isso, podem tocar e comover os corações dos homens de boa vontade» .
O profeta não só pensa, mas, além disso, sabe que é sentinela (Os 9,8), servidor de Deus e do povo (Am 3,7; Jr 25,4;26,5), mensageiro do Deus vivo (Ag 1,13), qualificado pelo Espírito de Deus para discernir os caminhos do povo (Jr 6,27). Ele sabe-se envolvido no projecto de Deus sobre todas as nações (Jr 1,5); participa da dinâmica da história da salvação (Jr 1,10). O profeta nunca fala de Deus com conceitos abstractos e impessoais, mas com toda a sua existência comunica o amor apaixonado e a ardente santidade de Deus, que não pode permitir falsos deuses junto d’Ele.
Os profetas anunciam Aquele que será totalmente dócil ao Espírito de Deus, pelo qual será ungido e enviado: «Sobre Ele repousará o Espírito de Deus, Espírito de sabedoria e de inteligência, de conselho e de fortaleza, Espírito de conhecimento e de temor de Deus» (Is 11,2). Por outro lado, eles anunciam constantemente que Deus quer reger toda a nossa vida, pública e privada, e anunciam-no de maneira histórica e concreta. Justamente esta concretude com que devemos expressar nossa resposta a Deus nos leva ao conflito com os “poderosos”, com os que não querem converter-se e não pretendem renunciar ao egoísmo individual e colectivo.
A tarefa do profeta é a de interpretar os acontecimentos como palavra, mensagem e chamado de Deus (Cfr. Am 3,7). E, geralmente, as virtudes pregadas e vividas pelos profetas são principalmente a gratidão, a esperança e a vigilância, junto com o espírito de discernimento, que é dom de Deus.
O profeta vem anunciar a salvação ou a libertação, por meio da qual Deus salvará seu povo da infidelidade e do pecado para levá-lo à santidade, à perfeição e à paz perfeita. Assim, podemos dizer que há um duplo agir da parte do profeta: na luta contra a corrupção e toda a espécie de injustiças sociais e o anúncio da libertação. Por conseguinte, o profeta actua por meio da palavra.
«Ele não realiza mas faz. Diz o que Deus vai realizar, mas ele próprio não actua. Suas acções são sinais da acção de Deus» . Um outro posicionamento à luz do profetismo do Antigo Testamento atesta-nos que «Os profetas suplicam e ameaçam, mas não se lhes presta atenção. Anunciam um maravilhoso regresso à Jerusalém» . Nesta dimensão, o profeta torna-se o porta-voz de Deus e encontra-se ao serviço duma mensagem que deve transmitir. Ainda nesta linha de pensamento, a mensagem incansável dos profetas é a denúncia da instalação do imperialismo. Denunciam as falsificações do projecto de Deus, os compromissos com as divindades estrangeiras e os ídolos deste mundo. Daí, os profetas apelam para uma libertação radical em vista ao Reino de Deus inscrito nos corações e uma comunhão de cada um e de todos com o Deus vivo.

2.2. A função de Cristo, profeta
A entrada de Cristo no mundo caracteriza-se por autêntica explosão do espírito profético. O próprio Cristo enfatiza programaticamente seu carácter de profeta na Sinagoga de Nazaré «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres (...) e para proclamar um ano de graça ao Senhor». (Lc 4,18-19).
De facto, «Cristo não é um dos profetas. Cristo é o profeta, é o homem religioso, porque é o Homem-Deus» . Cristo leva à sua consumação toda a história profética e abre uma nova era: a era em que o Espírito de Deus se difunde a tal ponto que o povo de Deus se caracteriza pela participação na função profética do Filho. Aliás, pelo baptismo todo baptizado é um profeta que deve dar continuidade à missão profética do supremo profeta.
Mais do que qualquer outro profeta, Cristo é o profeta no sentido de sinal de contradição e de divisão (Cfr. Lc 2, 34). Ele entra em conflito com sacerdotes e fariseus, com a classe dominante, mais preocupada com os privilégios e com as tradições do que com a voz do Deus vivo, com a necessidade e com a dignidade dos homens.
Cristo, ápice da história profética, desmascara todos os falsos profetas (Mt 7,1-2). Somente os que O reconhecem como o profeta, Filho de Deus vivo, tanto pela vida quanto pela palavra, podem participar da história profética de que Ele é artífice em plenitude.
 
3. AS PROFECIAS MESSIÂNICAS
Nos livros do Antigo Testamento podemos encontrar uma variedade de passagens proféticas com a expectativa de um enviado celeste, de um Messias, cujo aparecimento devia assinalar o início de uma nova época nas relações entre Deus e a humanidade. O Antigo Testamento está dominado pelo perfil do futuro Messias, de quem os autores sagrados realçam a vida e a obra que deverá vir fundar: “um Reino de justiça e de verdade” (Cfr. Lc 4,18-19).
Assim, as principais profecias que podemos precisar e que nos parecem tão evidentes à luz da Sagrada Escritura são:
O Messias seria descendente de David (2Sam 7,11-13). Este Messias viria antes da destruição do Templo (Ag 2,7.8). Teria como mãe, uma virgem «Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um Filho e será chamado Emanuel» (Is 7,14). O Messias devia nascer em Belém de Judá (Mq 5,2). Ele teria um precursor (Ml 3,1) que pregaria às margens do rio Jordão na região da Galileia (Is 9,1-2). Seria mestre e profeta (Dt 18,15), legislador e portador de uma nova aliança entre Deus e os homens (Is 55,3-4), sacerdote e vítima (Is 52,15.53); seria humilde e manso (Is 11,1-5), salvador da humanidade e pedra de escândalo (Is 8,14), pleno do Espírito do Senhor (Is 11,2), faria milagres (Is 35,4-6), entraria triunfante em Jerusalém (Zc 9,9).
 
3.1. Consumação das profecias
De facto, «Como Messias pré-anunciado, Jesus pertence à família de David (Mt 1,18-23), nasceu de uma virgem (Lc 1,27) em Belém de Judeia (Lc 2,4-7), teve um precursor: João Baptista (Jo 1,15), fez milagres de toda a espécie (Mt 11,5), foi pobre, humilde e manso, legislador (Lc 5,1-11), salvador, sacerdote e vítima» .
Ao começar sua vida pública, na Sinagoga de Nazaré, toma em suas mãos o livro do profeta Isaías e depois da leitura diz: «Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir» (Cfr. Lc 4,21) e depois de desacreditado acrescenta: «Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria» (Lc 4,24). Assim, «Não se pode nunca duvidar que Jesus morreu sobre a cruz como profeta messiânico» . Jesus é profeta enquanto Messias pré-anunciado pelos profetas.
 
3.2. As profecias de Jesus

Afirmamos antes que Jesus atinge o cume de toda espécie de profetismo. Portanto, é-nos suficiente declarar que «Jesus não foi somente objecto de profecias, mas também sujeito delas. Ele é profeta. Parece que para Ele o futuro não tinha mistérios, que conhecia o futuro como o presente» .

Nos Evangelhos está bem patente que Jesus predisse tanto a sua paixão bem como a sua morte (Mt 16,21-23). Igualmente, predisse a traição de Judas em Mt 26,21-25, a tríplice negação de Pedro (Mt 26, 30-35) e o seu martírio (Jo 21,18-19).

Outros factos elucidativos que atestam as profecias de Jesus são: Jesus predisse a glória de Madalena (Mt 26,13), a fuga dos discípulos durante a paixão (Mt 26,31), as perseguições aos discípulos depois da morte de Jesus (Mt 10,17-23; Mc 13,9-13), a conversão dos pagãos (Mt 8,11), a pregação da Boa Nova em todo o mundo (Mt 24,14), a sua permanência no mundo até a consumação dos tempos (Cfr. Mt 28,20), as heresias e divisões que viriam à tona no seio da Igreja (Cfr. Mt 7,15-22) e a destruição de Jerusalém (Mt 24,1-2).

Decerto, «Aos milagres físicos operados sobre a natureza e à ressurreição de seu corpo, junta-se o milagre intelectual das profecias. Jesus domina o passado, o presente e o futuro. Somente o Filho de Deus pode ter tais poderes divinos» .



4. O AGIR PROFÉTICO DE JESUS

4.1. Traços do profetismo de Jesus

Jesus levou ao termo toda a espécie de profetismo de tal modo que a sua vivência e acção situam-no acima de seus contemporâneos, introduzindo uma nova ideia de Deus e de religião.

Ao começar a sua actividade messiânica apareceu como um reformador social lutando pela justiça, sem medo dos “poderosos”; comprometendo-se plenamente com a sociedade de seu tempo e lutando por transformá-la. De facto, «Jesus é o homem que assume o sofrimento do povo, tomando-o sobre si. É o homem que faz do sofrimento do povo seu próprio sofrimento, tirando-lho portanto» . Por outro lado, Jesus apareceu como um homem inspirado, pois, tinha uma consciência tão clara de que era Deus quem lhe falava. Daí que Ele tira a sua mensagem da própria fonte divina e sua força e sustentáculo é a Palavra que o Pai lhe comunica pessoalmente (cf. Jo 17,6-8).

Jesus apareceu também como homem público porque o seu dever de transmitir a Palavra de Deus o coloca em contacto com os demais. Ele não se detém ao Templo, mas vai além do Templo, às praças públicas onde o povo se reúne, lá onde a mensagem é mais necessária e a problemática é mais aguda. Ele tem um contacto directo com o mundo que o rodeia e nenhum sector social lhe é indiferente porque nada é indiferente para Deus .

A figura de Jesus apareceu também como um homem ameaçado que rompe com todas as barreiras sociais, pois, Ele sentia na carne o que Deus disse ao profeta Ezequiel «Dirigem-se a ti em bando, sentam-se na tua presença e ouvem tua palavra, mas não a põem em prática. Tu és para eles como uma canção suave» (Ez 33,31-33). É ameaçado de perder-se numa causa que não encontra eco nos ouvintes. No entanto, não são todos que não O escutam porque alguns seguiam-no aonde quer que fosse. Todavia, Ele é acusado de blasfémia, de traidor da pátria até à perseguição, ao cárcere e à morte.

O povo reconheceu em Jesus um profeta. Moisés havia anunciado a vinda de um outro profeta, semelhante a ele (Dt 18,18). E a multidão reconheceu em Jesus esse profeta. Os discípulos também o vêem como um profeta depois da ressurreição da filha da viúva de Naim e aclamam dizendo «Um grande profeta surgiu entre nós e Deus visitou o seu povo» (Lc 7,16; Jo 5,4;9,17).

Jesus actuou como profeta em sua vida mortal. Com efeito, Ele veio salvar o povo de Deus (a humanidade depravada), corrigi-lo e dar-lhe sua forma definitiva. Por outro lado, «Sua vida e ministério terrenos foram sinais e símbolos de sua acção depois da ressurreição. Jesus actuou mais como profeta antes da sua morte e ressurreição anunciando e mostrando a sua acção actual» .

Jesus não só foi reconhecido como profeta, como também Ele próprio atribuiu-se a missão de profeta e se identificou com o papel e o destino dos profetas (Jo 4,44). Por outro lado, Jesus persiste a ir a Jerusalém, porque os profetas morrem lá (Lc 9,51-52). Podemos notar ainda que a vinda do Espírito sobre Jesus e as palavras do Pai atribuindo-lhe a vocação profética anunciada pelos antigos profetas mostram que Jesus é um profeta (Lc 3,22).

Às vezes, os Evangelhos fazem um paralelismo entre Jesus e os grandes profetas, Moisés, Elias e João Baptista (Lc 9,8.19; Dt 18,15; Lc 4, 25-27). Aliás, o próprio Jesus colocou-se na linha de João, em continuidade com ele, mas afirmando a sua diferença radical «Digo-vos que dentre os nascidos de mulher não há maior do que João; mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele» (Lc 7,26-28).



5. OS ACTOS PROFÉTICOS DE JESUS

Conforme vimos anteriormente, o profeta é um intermediário entre Deus e o seu povo: um enviado de Deus ao seu povo e representante do povo junto de Deus. Com efeito, o Novo Testamento apresenta-nos três figuras que constituíam os grandes profetas antes de Jesus, ei-los: Moisés, Elias e, sobretudo, João Baptista (Cfr. Lc 9,7-8).

O profeta é enviado ao povo de Deus para anunciar sua libertação, dar-lhe fé na libertação e assim fazê-lo erguer-se de sua escravidão: «Ora, tu também serás chamado profeta do Altíssimo (...) para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, para guiar nossos passos no caminho da paz» (Lc 1,76-79).

Por isso mesmo, o profeta transmite as palavras de Deus que são palavras com autoridade e força para destruir os pecados do povo, o pecado de sua infidelidade e traição à sua missão, para enfrentar os falsos profetas, os falsos pastores. «Os profetas são a consciência viva do povo, a presença do juízo de Deus condenando os falsos pastores que enganam o povo e o afastam de sua vocação (Jr 1,17-19)» .

De certo modo, o profeta é a pessoa que se responsabiliza pelo povo, que se identifica com o povo real e autêntico. Mas esse destino provoca conflitos. Dirigido por seus falsos pastores, o povo persegue o profeta. O profeta ao mesmo tempo se identifica com o seu povo e é rejeitado por ele (Jr 15,10.21).

O profeta é a pessoa que se aproxima de Deus e conhece os seus segredos. Ele se aproxima de Deus em nome de seu povo. E Deus o chama para conhecê-lo e enviá-lo a uma missão difícil «Iahweh, então, falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo» (Ex 33,7-11).

Todos estes factos encontram suma realização na pessoa de Jesus «O profeta que devia vir ao mundo» (Cfr. Jo 6,14).





5.1. Evidências textuais dos actos proféticos de Jesus

Jesus viveu num determinado ambiente em Nazaré e num tempo caracterizado por aparente estabilidade, por um lado, e discórdias e injustiças por outro. É nesta altura que Jesus aparece para salvar o seu povo enganado por maus guias, vem mostrar-lhe o verdadeiro caminho de salvação «Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso (...), pois o meu jugo é suave e meu fardo é leve» (Mt 11,28-30).

Jesus, em várias ocasiões, denunciou os doutores da lei de sua época e lutou para libertar o povo de sua má direcção, advertindo o povo para que não se deixasse enganar (Lc 15,1-7). Igualmente, Jesus condenou e denunciou os fariseus «Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos por eles» (Mt 6,1). Jesus expulsou os vendilhões do Templo e se opôs aos chefes dos sacerdotes censurando a sua incredulidade (Mt 24,1-2).

Como profeta, Jesus foi obediente até à perseguição e à morte. Ele tinha que morrer em Jerusalém. Sabia disso, anunciou-o e cumpriu-o «Ide dizer a essa raposa (...) hoje, amanhã e depois de amanhã, devo prosseguir o meu caminho, pois não convém que um profeta pereça fora de Jerusalém» (Lc 13,32-33).

Jesus foi perseguido por causa de sua acção profética; seus adversários O mataram porque Ele os denunciava e eles não queriam escutá-lo nem se converter. Acharam que Jesus era pecador, que Ele blasfemava e se levantava contra Deus pois obrigava-os a uma mudança «Agora sabemos que tens demónio. Abraão morreu, os profetas também, mas tu dizes: “Se alguém guardar minha palavra, jamais provará a morte”» (Cf. Jo 8,52).

Jesus anunciou a salvação do verdadeiro povo de Deus «...os que estavam perto serão rejeitados e novos filhos de Abraão virão de longe para formar um novo povo de Deus» (Cf. Mt 8,11-12). Também como profeta, Jesus reuniu o povo de Deus disperso e abandonado. É o povo dos pobres e humilhados, desprezados e sem nenhuma atenção das suas autoridades. Jesus denunciou a falsa devoção dos fariseus (Lc 7,36-50) e as falsas leis dos doutores da lei (Mt 5,20-48). Jesus anunciou o juízo de Deus: a destruição do pecado e da infidelidade com todos os seus sinais, inclusive a destruição do Templo e de todo o mal, a destruição da corrupção com a purificação deste mundo por um lado. Por outro lado, o advento do verdadeiro povo de Deus a partir do resto de Israel (Mt 8,10-12;22,1-20;25,31-46).

Com o seu profetismo e por meio de suas afrontas, Jesus foi perseguido e levado à morte violenta. Ele sabia que, sendo profeta, sua sorte seria a dos profetas, como foi o caso de João Baptista. Sua morte foi o ponto culminante do conflito com as autoridades de Israel que prepararam e decidiram a morte de Jesus e pediram a sua execução ao procurador Pôncio Pilatos (Cfr. Mt 16,21-26).

Jesus actuou por meio de palavras e obras, falando e realizando obras que constituíam sinais de suas palavras. Portanto, «Foi um profeta poderoso em obras e em palavras» (Lc 24,19).

Jesus dedicou-se ao seu povo e dentro do seu contexto. Ao falar do mundo sempre permaneceu no âmbito dos profetas. O que lhe interessava era o surgimento do novo povo de Israel, renovado numa nova Aliança. Jesus olhava sempre o futuro, queria um Israel diferente, presente em todos os povos, aberto também aos pagãos. Como os profetas, Jesus confiava absolutamente em Deus. Aliás, Jesus não é simplesmente um homem: «(…) é o próprio Deus feito homem» .



6. JESUS, O PROFETA QUE INAUGURA O REINO DE DEUS

Antes de tudo, convém situarmo-nos dentro dos parâmetros sobre o significado do Reino de Deus. Quando se fala de Reino de Deus o que se pretende dizer? Para termos uma resposta mais convincente Bultamann diz: «O Reino de Deus significa a salvação para o homem, concretamente, a salvação escatológica, que põe fim a toda a realidade terrestre. É o sumo bem que, enquanto escatológico, é uma grandeza simplesmente extra-mundana diametralmente oposta a todos os bens relativos do mundo» . Não se pode imaginar um Reino exactamente terrestre, mas devemos perceber que a pregação de Jesus é o anúncio escatológico, isto é, o cumprimento da promessa da iminência do Reino (Cfr. 1Cor 10,23-24). O Reino de Deus significa que «Deus reina no facto e com o facto de Jesus fazer da aflição do povo a sua própria causa. O próprio Jesus, esse homem, é portanto o Reino de Deus» .

Na tradição veterotestamentária e no judaísmo, o Reino de Deus significava a proximidade, a chegada de Deus mostrando o seu poder e a sua glória, como criador e Senhor do universo. «Portanto, o Reino de Deus não é primariamente um Reino, mas trata-se do senhorio de Deus, da prova da sua glória, do seu ser Deus» . É por isso que entre os judeus «O Reino de Deus era uma concepção ao mesmo tempo religiosa e política, de modo que o domínio da lei dependia, no espírito da maioria, do triunfo político da nação. Tal dependência, o Senhor a recusa, desde o início. O Messias era esperado como arauto invencível da lei santa e Rei vitorioso conduzindo sua nação ao domínio político do mundo» .

Este Reino prometido por Deus e anunciado pelos profetas sofreu várias interpretações ao longo da história de Israel. Os zelotas davam-lhe um sentido nacionalista; para outros tinha um significado apocalíptico com maior conteúdo espiritual e os fariseus faziam-no consistir numa religião das obras, reduzindo-o ao povo de Israel. Estas esperanças bíblicas numa perspectiva de poder temporal reflectem-se à volta da actividade de Jesus.

Jesus apresenta neste ambiente de esperança de salvação o anúncio do Reino. «A proximidade e o senhorio de Deus, mostra-se agora no amor, que se torna perdão, libertação e graça para todos os homens. Fala aos seus ouvintes numa linguagem familiar para que compreendam e vivam a sua mensagem» .

O Reino que Jesus vem inaugurar, será, de início, um reinado de Deus no íntimo das almas, e só a partir daí haverá de expandir-se em instituições exteriores. Por isso mesmo «Ensina o novo profeta que o Reino de Deus começa no recôndito dos corações “bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (Mt 5,3)» . O Reino de Deus não pode nascer na humanidade se não estiver impregnado das opções pessoais, morais e religiosas. Assim, o núcleo central da mensagem de Jesus é a instauração do Reino de Deus. Este Reino «É a constelação em que se situam as grandes realidades; é como que o campo magnético que determina as relações de Jesus para com Deus e para com os homens» .

Decerto, o Reino anunciado apresenta-se como vida porque «A salvação do Reino de Deus consiste em chegar a imperar no homem e pelo homem o amor de Deus que se auto-comunica. O amor manifesta-se como o sentido do ser. É só no amor que o mundo e o homem encontram a sua plenitude» .

Jesus fala do momento urgente, mas não força o homem, convida-o à conversão que exige uma mudança de conduta. A aceitação do Reino transformará o interior do homem. «O Reino de Deus tem um carácter soteriológico. Jesus convida a pôr a confiança em Deus e a ter coragem de confessa-Lo diante dos homens (Lc 12,7-10). Dá vista aos cegos, cura os leprosos (Mt 11,5-6) sinal de que a salvação chegou aos homens» .

Em Jesus desvenda-se esta mensagem perene da realização e actuação de Deus no presente para libertar o seu povo. Ele mostra aquilo que Deus está fazendo no presente pois Ele diz «Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciado o Evangelho» (Lc 7,22).

Jesus mostra que, n’Ele, veio e está entrando no mundo a nova era do mundo, o tempo da libertação, o Reino de Deus (Jo 4,21-26;14,6.9). Deste modo, Jesus mostra a libertação do povo dominado e desmascarado na sua totalidade pois é a ele que se destina o Reino de Deus.

O Evangelho de Jesus pede, em primeiro lugar, a fé que consiste em reconhecer que o Reino de Deus já chegou. Como diz Jesus, consiste em vê-lo onde Jesus o mostra. Os doutores da lei e fariseus nada viam, ao passo que os discípulos viam o seu florescer (Mt 8,1-10).

O Reino de Deus inicia-se com a chegada de Jesus e significa, de modo genérico, «O domínio de Deus sobre as suas criaturas, especialmente sobre os homens. É o restabelecimento do plano divino levado a cabo pela obra redentora de Jesus Cristo» .

O Reino de Deus era a expressão preferida pelos israelitas para expressar a espera e a esperança do povo de Deus. Por isso que «Jesus não está fora do Reino de Deus que proclama, pois o Reino de Deus vem por Ele e n’Ele» .

A caminhada de Jesus é a caminhada do Reino. A própria morte está inscrita na caminhada do Reino e serve ao Reino. Com a ressurreição, Jesus é estabelecido pelo Pai como autor do Reino, quem instaura ou traz o Reino de Deus a este mundo. Isto é-nos atestado também na seguinte afirmação «Jesus foi estabelecido como cabeça do seu povo: n’Ele e por Ele o povo recebe a libertação e se liberta e realiza o Reino de Deus» .

Em sua fase actual, o Reino de Deus é a presença activa do Espírito Santo. Assim, Jesus mostra o Espírito Santo que dele procede depois de sua ressurreição e constitui a nova vida, a nova humanidade, o novo homem. Por isso, o anúncio do Reino de Deus é também o anúncio de uma vida humana nova, de um novo modo de actuar do homem, ao qual os homens têm acesso se assim o quiserem.

Em síntese, pode-se dizer que à luz de Lc 4,16-30, o Reino de Deus consiste em anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar aos cativos a libertação e aos cegos o recobro da vista, pôr em liberdade os oprimidos e proclamar um ano de graça ao Senhor.

7. JESUS, O PROFETA À LUZ DO NOVO TESTAMENTO

Desde o princípio deste trabalho temos vindo a destacar aspectos que ilustram Jesus, o profeta. Neste capítulo, pretendemos apresentar de modo mais singular os factos do Novo Testamento que evidenciam isso.

Várias são as passagens da Sagrada Escritura que nos atestam o quanto se pode falar de Jesus enquanto profeta. E, nos Evangelhos, Jesus designa-se a si próprio como um profeta com uma sorte idêntica à dos outros profetas «Não convém que o profeta morra fora de Jerusalém» (Cfr. Lc 13,33).

Jesus declara que nenhum profeta é honrado na sua terra (Mt 13,55-58).

Jesus, portanto, dá-se a si mesmo o título de profeta. Porém, as multidões também O aclamam como profeta: «Este é Jesus, o profeta de Nazaré na Galileia» (Mt 21,11).

Os chefes dos judeus procuravam matar Jesus, mas tinham receio, pois a multidão O considerava um profeta (Mt 21, 45-46).

Os discípulos de Emaús, após a morte do Senhor falam d’Ele como de um grande profeta «Tu és o único a ignorar o que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo?» (Lc 24, 18-19).

A samaritana falando com Jesus chama-lhe profeta «Senhor, vejo que és profeta» (Jo 4,19).

Ao ver as obras de Jesus, o povo interroga-se se Ele não é o Messias profeta à maneira de Moisés, tal como foi anunciado por Moisés em Dt 18,19.

Depois da multiplicação dos pães, o povo diz que Jesus é realmente o profeta anunciado «Este é realmente o profeta que devia vir ao mundo» (Jo 6, 14-15).

Entre a multidão de pessoas que escutavam o ensinamento de Jesus dizia-se «Ele é realmente o profeta». Outros diziam ainda «É o Messias» (Jo 7, 40-41). É curioso notar como João acentua que as pessoas diziam que Jesus era o profeta anunciado por Moisés.

No Evangelho de Lucas, Jesus reconhece que a unção profética anunciada por Isaías se referia à sua pessoa «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres (...)» (Lc 4,l6-21).

Jesus, como um profeta, proclama a vinda iminente do Reino de Deus, ensina como um doutor ou um sábio, cura os doentes, exorciza possessos como um homem que está investido do poder de Deus.

A opinião pública, na confissão de Pedro (Mc 8,28; Lc 9,19; Mt 16,14), é que Jesus era visto como João Baptista; para outros, era Elias; para outros ainda, um dos profetas de outrora que ressuscitou. Mas Pedro declara absolutamente «Tu é o Messias, o Filho de Deus vivo» (Mc 8,29).

Segundo a opinião mais corrente, Jesus foi um profeta não só aos olhos dos seus contemporâneos, mas também aos seus próprios olhos. De entre as categorias sócio-religiosas da Palestina de então, a de profeta parece ser, de facto, a que melhor corresponde globalmente ao seu perfil e à sua actuação . Por outro lado, nota-se que Jesus concebeu a sua actividade, palavras e acções, como sendo a instauração do Reino de Deus. Ora, Lc 4,16-30 ressalta que para Jesus, o Reino de Deus já é uma realidade no momento em que Ele fala. Este Reino consiste no anúncio da Boa Nova, na libertação dos cativos e dos oprimidos, etc.

Jesus é o Messias prometido nas profecias do Antigo Testamento (Cfr. Mc 14,61-62). O Evangelho de «Lucas sublinha a união profunda e misteriosa do Espírito Santo com o ministério profético de Jesus» .



8. APRECIAÇÃO CRÍTICA

Dos traços sob os quais a tradição se acostumara a representar o Messias «A escola de Bultmann O nega e considera todos estes títulos como inserções posteriores nos Evangelhos realizadas pelo kerigma pós-pascal da Igreja primitiva» .

É certo que as profecias do Antigo Testamento se compreendem melhor à luz da sua realização. A linguagem profética não tem a exactidão da matemática. Contudo, se examinarmos as várias correntes messiânicas do Antigo Testamento e compararmos a pintura que daí resulta com a vida e acções de Cristo, não há dúvidas que as antigas predições se referem a Jesus e ao Reino por Ele estabelecido.

E uma vez que a realização destas profecias se comprovou historicamente na pessoa de Cristo, «Não somente cessaram todas as profecias em Israel, mas também se deu descontinuidade de sacrifícios logo que o verdadeiro cordeiro pascal foi sacrificado» .

Toda a expectativa que se aflorava no mundo israelita se encontra no seio do mundo gentílico. O que em primeiro lugar separa Cristo de todos os profetas é que Ele era esperado; os próprios gentios ansiavam por um libertador, ou redentor. O segundo distintivo foi que a sua aparição causou tal repercussão na história, que esta ficou, desde logo dividida em dois períodos: um antes e o outro depois da sua vinda. O terceiro facto que o põe à parte de todos os outros é o seguinte: «Todas as outras pessoas que vieram a este mundo, vieram para viver. Ele veio para morrer. Poucas das suas palavras e acções são inteligíveis se as não relacionarmos com a sua cruz» .

Diante da figura histórica de Jesus, da sua aparição, da sua obra, da sua mensagem, o historiador chega ao limite, no qual não existe mais explicação, e também no qual surge, pelo contrário, o mistério insondável. O povo vê n’Ele um profeta (Mc 8,28; Mt 21,46). Na sua entrada em Jerusalém, as fileiras populares O aclamam com grande euforia: «Eis o profeta de Nazaré da Galileia» (Mt 21,11).

Jesus é profeta, contudo, nem todos são unânimes com esta ideia pois para Käsemann isto não explica completamente a sua obra. O profeta está sempre sob a autoridade de Moisés. Jesus, porém, coloca-se acima dele .

Os evangelistas transmitiram-nos a impressão que a personalidade de Jesus tinha produzido sobre aqueles que se aproximavam d’Ele. Referiram-nos as opiniões emitidas sobre a sua identidade e sobre a sua função. Até os discípulos de Emaús O admiram: «O que diz respeito a Jesus de Nazaré, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo» (Lc 24,19). Essa qualidade de profeta, porém, não representa tudo o que os contemporâneos de Jesus imaginavam da sua identidade (Cfr. Mc 8,27-28). Os discípulos estavam divididos sobre a sua identidade. Os seus contemporâneos, privados de toda a independência política, com uma lei que os separava de outros povos, pensaram que, finalmente, o profeta esperado tinha chegado.

Mas Jesus não é indiferente às divergências sobre a sua identidade. Pelo contrário, aceitou o juízo segundo o qual era profeta. Por isso, por várias vezes, afirma tomar lugar entre os profetas (Cfr. Mt 23,31). Na releitura de Lucas 4,18-21 vemos que Jesus aplicou a si mesmo a profecia de Isaías 61,1 evocando a consagração do profeta e descrevendo a sua missão. Vemos aqui que «Jesus reivindica para si mesmo o poder profético» .

Ora vejamos que a palavra e acção de Jesus, proféticas como são, revestem-se duma força messiânica. O povo espera d’Ele a transformação radical a que aspira. «Jesus que, como profeta, anuncia aos oprimidos a libertação, é obrigado ou a aceitar o papel que o povo lhe impõe e entrar, assim, na função dum Messias nacionalista, ou então frustrar o povo na sua expectativa e nas esperanças que a palavra d’Ele despertara» .

Porquê o povo devia ver n’Ele, o profeta? Tudo porque esta palavra (profeta) descrevia perfeitamente a maneira como Ele se apresentava ao povo: a mesma paixão pelo Reino de Deus, a mesma liberdade a respeito dos “poderosos” de momento, a mesma experiência da presença de Deus, a mesma inspiração pelo Espírito, a mesma “violência e força” para a causa dos oprimidos, como os antigos profetas de Israel. No entanto, não pode ser confundido como um dos profetas do Antigo Testamento que veio anunciar o fim dos tempos.

Jesus de Nazaré apresenta-se-nos profundamente incarnado nas coordenadas de tempo e de espaço, sem, no entanto, o seu horizonte ficar por isso limitado. «O anúncio do Reino que Ele faz, a denúncia da injustiça, a sua oração ao Pai, dão-se nos limites estreitos da Palestina e no curto espaço de 36 anos» . Ele mostra que a soberania de Deus chega a todos os homens, mas não se impõe a ninguém. O Reino de Deus é um dom, uma graça que se oferece, e que se fosse imposto, perderia o sentido de gratuidade e opcionalidade. Jesus, por meio de uma imagem infantil, apresenta-nos a disposição que devemos ter para receber o Reino de Deus (Mc 10,5).

A função mediadora e profética que sublinhámos antes repousa sobre uma relação pessoal e imediata de contacto com Deus. Por isso, frisámos que a missão do profeta exige que ele seja intercessor de seu povo diante de Deus. E Jesus representa o Servo de Deus, a figura do mediador por excelência. A sua acção profética levou-O ao sacrifício salvífico da sua vida como efeito da sua obediência ao Pai Celeste e como expressão do seu amor abnegado à causa de toda humanidade. Cabe-nos, enfim, sublinhar que a vida profética de Jesus foi caracterizada por dois factores que se completam mutuamente: o seu anúncio era acompanhado com palavras actuantes e era existencial. Por este facto, a sua própria vida constituiu anúncio da iminência do Reino de Deus.

É próprio do profeta bíblico ser perseguido até à morte. Basta pensar em Elias (1Rs 19,10.14), Jeremias (11,18) ou no Servo de Deus do Deutero-Isaías, em cuja figura se concentram não só a grandeza, mas também, toda a tragédia na vida do profeta; tragédia que, mesmo no seu aparente absurdo se torna fonte de bênção e de salvação para o próprio profeta e para o povo a ele confiado. Jesus se põe a si mesmo na longa série dos profetas perseguidos. De facto, Ele sabe que o seu destino é um destino profético (Cf. Mt 5,12; Lc 13,33).

CONCLUSÃO

No âmbito judaico da época de Jesus existia uma grande expectativa messiânica com diversas orientações. «Alguns esperavam a aparição de um Messias Rei, descendente de David, com fortes acentos políticos e nacionalistas. Desta corrente participavam inclusive os próprios Apóstolos» . Outros acentuavam aspectos mais espirituais, baseando-se em diversos textos dos antigos profetas, considerando não tanto a figura do Messias quanto a intervenção providencial do próprio Deus. Mas Jesus não se situa exclusivamente em nenhuma destas correntes. Está acima de todas e, de algum modo, faz uma síntese superadora de todas elas, duma maneira nova e original, imprevisível. O messianismo de Jesus rompe os esquemas do messianismo judeu do seu tempo.

Ipso facto, «Profetizaram-se com abundância de detalhes os momentos culminantes da vida do Messias, a fim de tornar-se inconfundível com a mais rigorosa certeza que se possa imaginar a pessoa do Legado Divino» . Aliás, o próprio Mestre dá testemunho de si mesmo «Examinais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna e elas são as que dão testemunho de mim» (Cfr. Jo 5,39). Ele dá origem à revolução mais radical jamais vista, que transforma a consciência humana e se constitui ponto de referência e de significado de toda a história.

Há em Jesus algo que ultrapassa todos os antigos profetas, a todos de maneira incomensurável. Esse algo é que Deus «Enviou o seu Filho (...) para que habitasse entre os homens e lhes contasse a intimidade de Deus» (Cfr. Jo 1,1-18). De facto, Jesus Cristo «Fala as palavras de Deus (Jo 3,34) e consuma a obra da salvação que o Pai lhe ordenou realizar. Ele conduz à plenitude toda a revelação» . Muitos se admiravam com a sabedoria de Jesus e exclamavam: «Como entende Ele de letras sem ter estudado? Jesus responde: “minha doutrina não é minha, mas d`Aquele que me enviou”» (Jo 7,14-16). Jesus fala de Deus, e sentimos por detrás das suas palavras o eco de uma grande paixão. Recolhe as vozes dos grandes profetas e eleva-as a uma altura muito amada. Ele levou completamente a sério o Absoluto de Deus, e até às últimas consequências. Por isso, «Jesus é um profeta deslumbrado pela potência infinita, a força e a santidade de Deus» .





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