segunda-feira, 25 de outubro de 2010

VOLTA PRA MIM

HOJE É DOMINGO

O dia acordara cedinho enfarpelado de luz resplandecente, sol claro-escuro numa luz que ofuscava o transluzir da minha conspecção. Os raios do sol trespassavam a minha imaginação depenando a ociosidade que domava a minha vontade quando querendo erguer o meu corpo, o sono pesava sobre mim. Senti rumores tempestuosos sacudindo o timbrar do alarme que vibrava ao meu celular. Desliguei à primeira vista porque não resistia mais a suavidade do tom angélico daquele alarme: um anjo dominical cantarolando aos meus ouvidos surdos. Passou meia hora e a minha vista ainda continuava densa mas devia forçosamente pular da minha cama torneada. Marquei dois passos e estampei o meu olhar pesaroso. Depois de sacudir a doçura nocturna que me cobria pela escova, molhei-me num banho morno e despi toda vaidade para ir acerejado ao encontro do meu pão. Fasciculei-me todo inteiro, sem reservas; aferrolhei a porta do meu aposento e aprumei os meus calçados incolores, típicos do terreno de acção (a terra de Mavalane); empoeirada, arreada e trajada de sujidade atemporal. Antes de galgar ao chapa devia invitar os meus “museus” (companheiros de pastoral) com os quais auguro navegar nas marés insólitas da aventura odisseica da vida celibatária.

Vozes dementes sussurravam-me dirigir o olhar à porta do refeitório, tomar um chá fresco, com doçura dominical. Num bate-papo flexível despachei-me porque os “museus” já me aguardavam para partirmos ao terreno. Todos eles fumegavam adornados a moda de domingo como é próprio de celibatários: endomingam-se para serem apreçados e assarapantarem os olhares femininos. Cinquenta metros da minha casa passa a Avenida Kim Il Sung, fluentemente dinâmica, estrepitosa e afogante. Foi naquele lugar onde, nós, os três “museus” grimpamos um chapa que nos dirigia a Mavalane. O nosso lema era: HOJE É DOMINGO. E todos os que estavam pendurados naquele chapa ficaram avassalados pelo imperioso lema dominical que para tal a obrigação era de nenhum passageiro ficar de pé; deixamos atrás uma paragem e a seguir dela estava uma “deusa” parada aguardando pelo chapa. De repente, bradou o cobrador: “Maguanine, Xikheleni, Componi aifambe mamana” (vamos mamã). Olhei confusamente àquela criatura e meu coração pinchou fora de lugar vibrando violentamente. Como eu estivera sentado, cedi o meu lugar para que ela usufruísse do calor que eu fui amontoando aquando da minha sentada. Acolhi-me ao seu lado derramando lágrimas intoxicadas sem enxergar o cacarejar das minhas palavras. O outro “museu” tossiu sem paciência e atirou o olhar àquela donzela endeusada. Sem perder tempo saudou-a afectuosamente num tom amoroso: “oi, tudo bem? Sinto que estás bem cínica. A propósito, de onde vens?” ao que ela disse: “tudo!? Venho do serviço e vou visitar os meus parentes em Xikheleni”. Retorquiu ele, “E o teu serviço está caminhando bem?” ao que ela respondeu: “Nada de bom porque trabalhar com negro não presta nada. Todo negro não vale nem tão pouco”. Face àquela asserção transpirei interiormente. Fiquei uns tantos minutos meio mudo e aterrorizado. Após um tempo taciturno, com lábios moribundos rasguei os meus nervos e depus-me a falar: oi moça estás consciente do que acabas de aferir? E ela disse categoricamente: “trata-se de uma experiência vivida e contra factos não há argumentos”. Este foi um outro abalo sísmico que estremeceu as minhas entranhas. Todavia, nem por isso deixei-me derrotar porque quando a veemência emocional sobe, a adrenalina psicológica também multiplica os fiascos racionais desenhando frases enigmáticas e, por vezes, antes de melancolia. Então julguei certo inquirir se alguma vez teria ousado tomar uma sopa de cacana pura. E ela como veterana disso, sabe sobejamente quão amargas são as folhas daquele vegetal. Entristeceu-se e, cabisbaixa disse: “Onde pretendes chegar?”. E eu disse assustado: “assim como nem todas as verduras são amargas, também nem todos os negros não prestam”. Com este provérbio similar acendi a euforia da minha “deusa” e senti que o seu semblante confessava uma brasa ardente queimando seu âmago com palavras presas em sua garganta. Dizia palavras silenciosas e reparávamo-nos mutuamente sem respeito como se de esposos se tratasse.

Antes de abarcarmos ao local onde o hábito nos tem aconchegado, ela foi a primeira a descer na paragem posterior à barbearia onde o meu “museu” (Nikula) tem ficado a fazer barbas pois quando avizinha o domingo entre nós é imperativo categórico despir as impurezas semanais (por ser Dies Domini) e vestir a mundanidade indo louvar ao Senhor com ar renovado. Quase a levantar-se para sair disparou ela: - “foi um prazer viajar contigo moço. Devo descer porque alhures neste bairro morram os meus parentes. Posso ter o teu contacto telefónico?” duvidei a singeleza dela e num ar desconfiado respondilhe: não desponho de contacto talvez a referência mais fácil seja a matrícula deste carro: KV O7.07. decifrei-lhe estas letras num tom mudo: “Kant de Voronha nascido no dia sete (07) de Julho (07)”. É divertido moço, tchão. Vemo-nos depois ao teu regresso de Mavalane.

Fiquei sentado no chapa com coração volumoso, uma cara de Jesus crucificado em agonia e meditabundo. Repensei as palavras perdidas no silêncio que não as disse e loucuras sensacionais podia ter revelado gozar. Chiei no meu íntimo: perdi uma “deusa macua, talvez fosse minha avó que me faria companhia neste mar tumultuoso que suporto intacto”. Naquela altura nenhum homem deixaria chamuscar seu perfil com aquela anjinha. É uma estrela incandescente como aquela que conduziu os magos que iam adorar o menino Jesus em Belém que acabara de ser “parido”. Mas depois de olhar a cruz no alto da capela e uma luz vermelha acesa ao tabernáculo onde “vive o Senhor” toda malícia tornou-se cinza e toda perturbação ficou esmagada pela espiritualidade dominical.

Confesso-vos, nunca me deixei domar como aquele dia. Porque devia ser naquele dia somente? E por sinal no Domingo? “A ocasião faz o ladrão” diz um adágio popular e ninguém espaça a esta realidade real. Atravessam-me imagens confusas daquela personagem ignota e vive na minha imaginação invadindo impacientemente o meu inconsciente e não posso apagar: espero voltar a vê-la. Decerto, “os homens não se encontram uma vez” e nesse dia vou preferir afogar-me nela e asfixiar-me na sua beleza extasiando a minha fome sensacional. Na verdade, aquele dia era domingo, dia do Senhor. Só no domingo o homem estraga a obra da criação do supremo criador envolvendo-se em desonras humanas e inumanidades. Quem me dera voltar a ver aquela “deusa” e viver novamente aquele domingo inolvidável.

1 comentário:

  1. VOLTAR A VER AKELA DEUSA... Assim eu concordo k um dia verás de volta a tua deusa é só kestão de tempo...

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