terça-feira, 7 de junho de 2011

A CARIDADE COMO PLENITUDE DA PERFEIÇÃO CRISTÃ

1. Noção dos termos “Caridade e Perfeição”
1.1. Caridade
O termo “Caridade”, do latim “caritas” e do grego “charis” significa amor, «amor sobrenatural a Deus e ao próximo, com a Fé e Esperança»[1]. Neste sentido, «a Caridade é a virtude pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, por amor d’Ele»[2]. Para a Igreja, portanto, a Caridade pertence à sua natureza e é expressão irrenunciável sendo que ela constitui a plenitude da perfeição cristã. A ser assim, na espiritualidade cristã, o termo Caridade não tem o significado superficial com que comumente se emprega para indicar a prática da benevolência, embora seja um dos seus frutos, mas antes quer expressar a forma cristã da misericórdia e do amor que desabrocham de Deus. Segundo o Papa Bento XVI, a actividade caritativa cristã «não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é actualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade»[3]. A Caridade é, pois, a expressão do serviço aos outros, de gratuidade, de partilha e de generosidade desinteressada. A Caridade é uma atitude do espírito que expressa sua realidade transformando-se em acção: «Não amemos com palavras nem com a língua, mas com acções e em verdade» (1Jo 3,18).
1.2. Perfeição
Deriva do latim perfectio (de per + facere, onde o prefixo per indica que a acção foi levada a termo), que significa acabamento completo de uma coisa, de uma acção ou de uma ideia. Para nós, enquanto discípulos que tendem à perfeição cristã, «Cristo é o Mestre e modelo da perfeição»[4] e aos seus discípulos dá-lhes a ordem: «Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5,48). Tal preceito surpreendente, no Novo Testamento ocupa o lugar que ocupava no Antigo Testamento o preceito do Levítico: «Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo» (Lv 19,2; cf. 11,45). Portanto, «a perfeição a que são chamados os filhos de Deus é a perfeição do amor (Cl 3,14, Rm13,8-10)»[5]. Na perícopa lucana paralela a de Mateus (5,48), em vez de “perfeito” encontramos o termo “misericordioso” (Lc 6,36) e ambos se referem exactamente da Caridade universal, de amor que se estende mesmo aos inimigos. Deste modo, «os discípulos de Cristo têm sempre que progredir, que crescer no conhecimento e no amor (Fl 1,9)»[6].
São Paulo insiste no carácter obrigatório da perfeição: «É esta a vontade de Deus, a vossa santificação» (1Tes 4,3; cf. Ef 1,4). Sendo criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26s), o homem tem a possibilidade de buscar e conseguir a perfeição na imitação do Pai e no seguimento de Cristo, porque recebe de Cristo o Espírito Santo para o mover interiormente a amar a Deus com todo o seu ser e capacidade (cf. Mt 22,37; Mc 12,30; Lc 10,27) e ao próximo como a si mesmo e como Cristo ama (cf. Mc 12,31; Jo 13,34; 15,12). Portanto, a perfeição cristã se obtém e mede-se pela perfeição da Caridade[7].

2. A Caridade de Deus ao Homem
«“Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em deus e Deus nele” (1Jo 4,16)»[8]. Este amor com o qual Deus é identificado por São João dimenciona e caracteriza o próprio centro da nossa Fé, uma vez que conhecemos o amor que Deus nos tem e nele cremos. Este amor de Deus ao Homem, «antes de ser e mais do que ser exigência de comportamento ele é revelação da adopção pela vida trinitária»[9]. No Antigo Testamento o amor de Deus não é um sentimento nem simples comportamento, mas a acção de Iahweh, que se lembra do seu povo prisioneiro em terra estrangeira e intervém historicamente em seu favor. A afirmação de que a acção de Iahweh sobre Israel é manifestação do seu amor encontra clara evidências em Oseias: «Quando Israel era criança, eu o amava e do Egipto chamei o meu filho» (Os 11,1). Trata-se, pois, de amor activo dirigido a uma colectividade (Jr 31,3; Dt 4,37; 10,15; Sl 41,12) e se manifesta com seu carácter de universalidade através da acção de Deus em favor de seu povo (Is 42,1; 49,7). E este amor que se renova de geração em geração, tem plano e desígnio eternos.

3. Jesus Cristo, revelação plena da Caridade de Deus ao Homem
Jesus Cristo é a revelação plena da Caridade de Deus aos homens: «Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou o seu Filho Único ao mundo para que vivamos por Ele» (1Jo 4,9). Esta Caridade, iniciativa de Deus, se manifestou no dom de Cristo por nós pecadores, e teve sua plena realização na Cruz: «Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele quem nos amou e enviou-nos o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados» (1Jo 4,10). A ser assim, escreve um exegeta: «a palavra amor requer sempre um dicionário, e, para os cristãos, o dicionário é Cristo Jesus»[10]. Portanto, Caridade de Deus revelou-se plenamente, em acontecimento histórico. Pois, é Jesus Cristo que inaugura o tempo de misericórdia divina. E «este acontecimento histórico, revelação única e suficiente do amor de Deus (cf. Rm 5,8; Jo 3,16), manifesta também que Deus não só amou (passado), mas que “é amor” (1Jo 4,8), pelo qual sua acção se insere no tempo»[11]. De facto, na sua morte de Cruz, o amor toma a sua forma mais radical, cumprindo-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, mediante o qual Ele se entrega para levantar o Homem e salvá-lo. Assim, olhando fixamente no lado trespassado de Cristo, o cristão encontra o caminho pleno da perfeição cristã, que é a Caridade. Deste modo, o mandamento do amor não é mera exigência, mas sim um mandado, porque antes nos é dado: «este é meu mandamento: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15,12), e acrescenta: «Vós sois meus amigos se praticais o que vos mando» (Jo 15,14). Portanto, em Cristo, a Caridade constitui o rosto da sua Páscoa, uma vocação dirigida a nós no itinerário da perfeição cristã.


4. A Caridade do Homem a Deus e ao próximo
Em todo Antigo Testamento estão patentes os vestígios de resposta do Homem ao amor electivo e misericordioso de Deus. Nesta perspectiva, Deus é amado como libertador e capaz de socorrer (Sl 18,2-4), sendo que escuta a súplica de seu povo. Este amor que devemos a deus se expressa no serviço e na obediência (Dt 10,12ss), por meio da observância dos mandamentos (Ex 20,6; Dt 5,10; 7,9; 11,1; Dn 9,4; Ne 15) e seguindo os seus caminhos (Dt 10,12; 11,22; 19,9).
A Caridade leva-nos a prestar a Deus o que com toda justiça Lhe devemos, enquanto criaturas. Deste modo, a Caridade constitui «a expressão sintética do dever cristão, ou seja, daquela situação de dívida radical em que se encontra todo Homem diante de Deus»[12]. Sendo a Caridade caminho que vem de Deus e que leva a Deus, é o caminho do verdadeiro conhecimento (cf. 1Jo 4,7-14). Pois, pela Caridade Deus se revela ao Homem e se deixa conhecer. A ser assim, a Caridade em seu sentido pleno abrange o da misericórdia entre os homens e Deus, assim como dos homens entre si. Eis a razão pela qual «sem Caridade, diz São Paulo, eu nada sou [...]. E tudo o que é privilégio, serviço, mesmo virtude […], “sem a Caridade, não serve para nada” (1Cor 13,1-4)»[13]. Pois, a Caridade é paciente, é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor» (1Cor 13,4-5), mas constitui a plenitude cristã a que todos nós somos chamados, enquanto peregrinos rumo à pátria celeste.

Conclusão
Chegados ao termo do nosso trabalho, é conveniente reiterar alguns horizontes que parecem ser pertinentes. Neste sentido, apraz-nos reafirmar que a Caridade com que amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor de Deus é, no Espírito de Cristo, o primeiro dom e constitui, identificada com a graça e enquanto alma e síntese da vida espiritual, a essência da perfeição cristã. Pois, a Caridade como vínculo da perfeição e plenitude da Lei (cf. Col 3,14; Rm 13,10), regula, informa e torna aptos para o fim todos os meios de santificação. Daí, a caridade para com Deus e para com o próximo ser o sinal distintivo do verdadeiro discípulo de Cristo[14].
Bibliografia
Bíblia de Jerusalém, Nova edição revista e ampliada, Paulus Editora, 2002.
Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2009.
_________, Carta Encíclica Deus Caritas est, Paulus Editora, Lisboa, 2006.
BROSSE, Oliver de la et al, Dicionário de termos da Fé, Editorial Perpétuo Socorro, Porto, 1989.
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Concílio Vaticano II Constituição Dogmática Lumen Gentium, Editorial A. O - Braga 199211.
DUFOUR, Xavier león e tal, Vocabulário de Teologia Bíblica, Editora Vozes, Petrópolis, 19843.
LATTUADA, A., in Dicionário de Teologia Moral, Edições Paulinas, São Paulo, 1997.
MONGILO, D., in Dicionário de Teologia Moral, Edições Paulinas, São Paulo, 1997.
PINTO, A. Vaz, in Enciclopédia Verbo Luso – Brasileira de Cultura, Vol. 5, Edições Século XXI, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1998.
M. SBAFFI, in Dicionário de Espiritualidade, Edições Paulinas/Paulistas, São Paulo, 1989.
SILVA, A. Perreira da, in Enciclopédia Verbo Luso – Brasileira de Cultura, Vol. 22, Edições Século XXI, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 2002.


[1] A. Vaz PINTO, in Enciclopédia Verbo Luso – Brasileira de Cultura, Vol. 5, Edições Século XXI, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1998, p. 1372.
[2] Catecismo da Igreja Católica, 1822, Edições Gráfica de Coimbra, Coimbra, 1993.
[3] Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas est, 31, Paulus Editora, Lisboa, 2006.
[4] A. Perreira da SILVA, in Enciclopédia Verbo Luso – Brasileira de Cultura, Vol. 22, Edições Século XXI, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 2002, p. 752.
[5] Xavier León DUFOUR e tal, Vocabulário de Teologia Bíblica, Editora Vozes, Petrópolis, 19843, p. 767.
[6] L. c. (Locus citatus).
[7] Cf. Oliver de la BROSSE et al, Dicionário de termos da Fé, editorial perpétuo Socorro, Porto, 1989, p. 588.
[8] Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas est, 1.
[9] D. MONGILO, in Dicionário de Teologia Moral, Edições Paulinas, São Paulo, 1997, P. 1311.
[10] M. SBAFFI, Op. cit., p. 82.
[11] L. c. (Locus citatus).
[12] A. LATTUADA, in Dicionário de Teologia Moral, Edições Paulinas, São Paulo, 1997, P. 158.
[13] Catecismo da Igreja Católica, 1826.
[14] Concílio Vaticano II Constituição Dogmática Lumen Gentium, 42, Editorial A. O - Braga 199211.

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