terça-feira, 7 de junho de 2011

A PERFEIÇÃO CRISTÃ NO ANTIGO TESTAMENTO II

INTRODUÇÃO
Cristo é o Mestre e modelo da perfeição. Aos que O seguem convida e ordena «Sede perfeitos como o vosso Pai celeste» (Mt 5,48). Faz, portanto, um apelo e uma exigência de perfeição ilimitada, embora dentro dos limites próprios do homem-criatura. Em resposta da graça recebida no baptismo cabe ao homem perseverar e crescer na perfeição durante toda a vida. Mas esta caminhada espiritual é vista, retrospectivamente, à luz da caminhada do povo eleito de Israel no Antigo Testamento. Eis a razão que nos move a reflectir, nas linhas que seguem a respeito da contribuição e o ensino da revelação sobre a perfeição cristã no Antigo Testamento. Com efeito, propomo-nos orientar nosso estudo com o seguinte esboço geral:
1. O ponto de partida da experiência espiritual de Israel
2. O Deus de Israel age e revela-se na história
3. O conteúdo da revelação de Deus

1.      O PONTO DE PARTIDA DA EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL DE ISRAEL
O ponto central da espiritualidade de Israel é constituído por alguns textos importantes e representativos que podem ser definidos como compêndios da experiência espiritual de Israel. Ei-los:
a)         O primeiro texto é o cântico de vitória do êxodo 15,1-18. «É um livro antigo disposto em coros alternados. Um coro exalta o poder divino e o outro relata a acção de Deus na história»[1].
b)         O segundo texto é o de Josué 24,14-28. Trata-se de um formulário de renovação da aliança: é na história que Israel reconhece o seu Deus.
c)         O terceiro texto é o conhecido trecho do Dt 26,4-10. «Descreve o que é o rito da oferta das primícias, cuja primeira parte é o relato da história em que se fala do poder do Senhor; a segunda parte é a oração ou formulário da oferta»[2].
O texto base é o trecho de Gn 12,1-4 definido por alguns como o “kerigma fundamental do Javismo”, no sentido de que «fala da iniciativa livre e gratuita de Deus que chama Abraão, introduzindo-se na sua vida e mudando-a»[3].

2.      O DEUS DE ISRAEL AGE E REVELA-SE NA HISTÓRIA
A história é uma caminhada colectiva em direcção a um termo. O sentido da caminhada, isto é, a sua direcção e o seu significado, e a consciência reflexa de haver um sentido, é que transforma os puros factos humanos, atómicos, dispersos, em verdadeira história reconhecendo-lhes coerência e inteligibilidade.
Deus age e manifesta-se, reage, revela-se e, através dos profetas, entra em diálogo, em relação com Israel, toma a iniciativa, conduz a história. Torna-se interlocutor do próprio homem, aponta-lhe o caminho, dá-lhe normas de realização, respeita-lhe a liberdade, mas fá-lo responsável pelas próprias decisões (cf. Dt 6, 4-13). A história surge assim a Israel como «horizonte de humanidade, iniciativa do seu Deus que entra em diálogo com o homem e apela para a resposta da sua liberdade. Deus apela e desafia a liberdade do homem»[4].
Aos olhos de Israel, Deus vai-se revelando, não já apenas como Senhor da história de Israel, mas como um Deus universal, um Deus único, e Senhor de toda a história humana. A história revela-se assim como a história de salvação, iniciada e conduzida por Deus e o próprio Deus através da história de Israel vai revelando os traços do seu Rosto. Deus ao revelar-se assim, através dos seus feitos históricos, «faz Israel tomar consciência de que esta revelação histórica e indirecta é também, necessariamente, provisória e progressiva»[5]. Por isso, a salvação e a revelação de Deus vai-se abrindo progressivamente, torna-se dinâmica, vai sendo superada e é posta sempre mais além, no futuro. Assim, a dimensão futuro torna-se a dimensão chave de Israel.

3.         O CONTEÚDO DA REVELAÇÃO DE DEUS
A fé de Israel descobre que existe um único Deus, Senhor de Israel, de todos os povos e de todo o universo. O monoteísmo de Israel mostra que é de Deus que nascem: a libertação do homem porque Deus é único; a unidade da humanidade porque à unicidade de Deus corresponde a unidade da humanidade, fontal, essencial e final; Adão não é só antepassado de Israel mas de todos os homens; o Deus de Israel é «Aquele sem o qual nada existe ou Aquele pelo qual tudo existe»[6].
Deus que gratuitamente escolhe Israel e através dele se quer revelar e salvar todos os homens é paciente, benigno, lento a indignar-se e sempre pronto a perdoar (cf. Ex 3,1-20; Dt 7,6-9) e por isso misericordioso e continuamente fala a Israel através dos profetas. «No devido tempo chamou Abraão, para fazer dele um grande povo (cf. Gn 12,2), preparando assim, através dos tempos, o caminho do Evangelho»[7]. Daí a necessidade da entrega incondicional ao projecto salvador de Deus.
Revelando-se Deus ao homem, de modo particular na história concreta de um povo, Israel, dessa mesma revelação e imagem de Deus se liberta necessariamente uma determinada imagem do homem, pois o «plano de Deus para o homem não é algo exterior ao próprio homem mas precisamente aquilo que o determina e define»[8]. A revelação de Deus e a revelação do homem correm paralelas e implicam-se mutuamente. Mas esta imagem será integrada e superada pela imagem do homem do Novo Testamento, pela revelação definitiva e insuperável de Deus e do Homem, realizada em Jesus Cristo.

3.1. Características fundamentais da perfeição à luz da revelação veterotestamentária
Como caminho que nos conduz à percepção da perfeição cristã, a revelação progressiva de Deus através da história e da sua Palavra[9] no Antigo Testamento apresenta-se como:
*         Uma atitude global que exige resposta positiva, existencial e integral do homem à revelação de Deus, ao Deus que se revela;
*         Acolhimento de Deus e da sua Palavra, da sua vontade, da sua lei, obediência, dom de si, entrega amorosa, confiança na fidelidade e amor de Deus, que envolvem opção e risco;
*         Reconhecimento de Deus como único Deus e Senhor, Transcendente e Absoluto, fonte de vida e de toda realização dos anseios humanos;
*         Projecto de fidelidade à aliança que se expressa nos mandamentos (Ex 20,1-21) como caminho de realização última e definitiva, individual e colectiva;
*         Capacidade de conhecer e reconhecer a Deus, de entrar em diálogo com Ele, de O amor (cf. Gn 3, Adão e Eva e Aliança);
*         Compreende-se que a autêntica fé bíblica, alicerçada na história de Israel, se expressa sobretudo por uma total confiança em Deus, no seu amor criador e libertador, por um lado, e por outro numa atitude de resposta, de disponibilidade incondicional e absoluta à sua vontade, expressão do seu amor e caminho de realização do homem.
*         Para João L. Antunes, «a fé, na revelação de Deus, implica aceitar que há um Espírito e um desígnio oculto na história do universo. E esse Ser cuja presença velada é revelada pela criação, é digno de ser objecto de culto e fonte de esperança»[10].
A revelação de Deus no Antigo Testamento faz-nos perceber que a perfeição cristã é um caminho de participação do homem ao desenvolvimento da vida divina e de graça que se mostra como um dom inesgotável. Daí o convite de Deus em permanecer fiel ao pacto de aliança já firmada. Assim, é necessário que o nosso agir corresponda plenamente ao dom e à vontade de Deus. Portanto, devemo-nos configurar progressivamente ao ideal da revelação: numa escuta atenciosa da Palavra de Deus (cf. Dt 6,1); numa entrega integral de si mesmo; conformando-se totalmente à vontade de Deus pois o caminhar equivale conformar a vontade de Deus na própria vida do crente; na observância fiel aos mandamentos e na dedicação a Deus e em relações recíprocas dos homens entre si.

3.2. A Criação e a Aliança
A confissão de fé de Israel centra-se no Deus libertador e está ligada à experiência histórica da saída do Egipto e da instituição da aliança no deserto. É uma experiência de libertação recebida como um dom e que deve ser celebrada de geração em geração (Ex 34,14-27), como testemunho de reconhecimento. Só num segundo tempo, o Deus libertador foi invocado como Deus criador. A criação é o primeiro gesto salvífico de Deus. «A lógica da criação é uma lógica de permuta de amor e de vida entre Deus e a humanidade e dos homens entre si, em nome de Deus»[11].
A aliança de Deus com o seu povo é o alicerce fundamental a partir do qual nasce e se desenrola toda a história de Israel. Israel celebrou a revelação dos mandamentos como um acontecimento salvífico de primeira categoria. Com esta celebração cultual, Israel expressava que o acontecimento da revelação sinaítica tinha a mesma actualidade para todos os povos, se renovava em cada geração e era contemporânea a todas (cf. Dt 5,2-4;29,10). «Aliança e Reino praticamente identificam-se e concentram a esperança de Israel no Ungido, o Messias-Rei que virá no fim dos tempos, precisamente para instaurar a nova aliança e inaugurar o Reino de Deus»[12].
À luz da aliança, o passado adquire pleno sentido e com o presente determinam o futuro que se concretiza na possessão da terra e na contínua bênção de Deus sempre fiel. «Deus que é a origem de tudo que vem à existência, intervém na história e fá-la caminhar. Esse é o Deus da aliança e só Ele é plenamente Deus»[13].

CONCLUSÃO
A história da salvação, no exclusivo marco do Antigo Testamento, foi uma história truncada porque o essencial dinamismo que a anima sofre um colapso. A linha ascendente desemboca num silêncio, que só a Palavra de Deus feita carne podia encher. A luz que irradia o grande acontecimento do Verbo feito Homem capacita-nos para descobrirmos, retrospectivamente, o grande sentido unitário do Antigo Testamento. Só a realidade de Jesus Cristo, Deus e Homem, morto e ressuscitado, possibilita nosso entendimento das Escrituras. «Só n`Ele e por Ele, a história de Israel é certa e plenamente História de Salvação»[14]. Caminhada de perfeição rumo à união plena com Deus.
A experiência espiritual veterotestamentária paradigmatizou-se sob o signo da aliança entre Deus e o seu povo. À luz da revelação bíblica, a perfeição cristã percebe-se como um itinerário pelo qual o nosso agir deve pautar conforme a vontade de Deus numa doação e entrega total aos desígnios de Deus. É necessário, igualmente, a assimilação da revelação e diálogo permanente com Deus que se revela na vida do dia a dia. A perfeição apresenta-se como um caminho a percorrer pois «A criação (...) foi criada em estado de caminho (in statu viae) para uma perfeição última ainda a atingir e a que Deus a destinou»[15]. A perfeição envolve todo o ser da pessoa; ela exige a doação amorosa a Deus com todo coração e todas as forças e ao próximo como a si mesmo.

BIBLIOGRAFIA
Catecismo da Igreja Católica, 302, Gráfica de Coimbra, Lisboa 19992
Concílio Vaticano II, Const. Dogmática Dei Verbum, 3, Ed. AO, Braga 199211.
FORMOSINHO Sebastião J., J. O. BRANCO, O Deus que não temos, Ed. Bizâncio, Lisboa 2008.
PINTO António Vaz, Revelação e fé, Vol. 1, Ed. AO, Braga 1989.
SÁNCHEZ Tomás Parra, Deus, humanidade, messianismo, Vol. 4, Ed. Paulinas, S. Paulo 1996.
SILVA João, Ao ritmo da palavra, Ed. AO, Braga 2009.
TRESMONTANT Claude, O problema da revelação, Ed. Paulinas, S. Paulo 1972.


[1] Claude TRESMONTANT, O problema da revelação, Ed. Paulinas, S. Paulo 1972, p. 177.
[2] Tomás Parra SÁNCHEZ, Deus, humanidade, messianismo, Vol. 4, Ed. Paulinas, S. Paulo 1996, p. 48.
[3] António Vaz PINTO, Revelação e fé, Vol. 1, Ed. AO, Braga 1989, p. 120.
[4] António Vaz PINTO, Op. cit., p. 174.
[5] Ibidem, p. 176.
[6] Ibidem, p. 180.
[7] Concílio Vaticano II, Const. Dogmática Dei Verbum, 3, Ed. AO, Braga 199211.
[8] António Vaz PINTO, Op. cit., p. 183.
[9] Tomás Parra SÁNCHEZ, Op. cit., p. 49.
[10] Sebastião J. FORMOSINHO, J. O. BRANCO, O Deus que não temos, Ed. Bizâncio, Lisboa 2008, pp. 28-29.
[11] João SILVA, Ao ritmo da palavra, Ed. AO, Braga 2009, p. 29.
[12] António Vaz PINTO, Op. cit., p. 200.
[13] João SILVA, Op. cit., p. 10.
[14] Ibidem, p. 14.

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