terça-feira, 7 de junho de 2011

A PERFEIÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO I

INTRODUÇÃO
A espiritualidade bíblica é fundamentalmente a espiritualidade da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Longe de criar contrastes com outras escolas de espiritualidade que surgiram durante os séculos, constitui o suporte de todo o caminho da perfeição. A Escritura nos revela a Trindade, a ressurreição, a Igreja e o homem, que está no coração e na mão de Deus. Pela ressurreição somos reconciliados em Cristo com Deus; pela ressurreição, Cristo é o Mediador de toda a economia da salvação (Rom 6,4-5). A ressurreição é o sinal e o fruto da cruz. É sempre o mesmo Senhor, o crucificado e o ressuscitado. Pela ressurreição encontramos a explicação de toda a vida de Cristo até o regresso de Jesus junto do Pai. Em particular, a espiritualidade bíblica nos faz compreender Jesus como o revelador do Pai, o culto filial de Jesus,a missão dos discípulos e testemunhas de Cristo vivo, em todos os tempos e lugares do mundo. Após esta breve análise do panorama geral da nossa espiritualidade cristã como fonte de perfeição cristã, importa lembrar que a intenção principal deste trabalho é de falar sobre a Contribuição e o ensino da revelação sobre a perfeição cristã no Antigo Testamento.

1.                  O PONTO DE PARTIDA DA EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL DE ISRAEL
O ponto central da espiritualidade de Israel é constituído por alguns textos importantes e representativos que podem ser definidos como compêndios da experiência espiritual de Israel. Ei-los:
a)                  o primeiro texto é o cântico de vitória do êxodo 15. É um livro antigo disposto em coros alternados. Um coro exalta o poder divino e o outro relata a acção de Deus na história[1].
b)                  o segundo texto é o de Josué 24. Trata-se de um formulário de renovação da aliança: é na história que israel reconhece o seu Deus.
c)                  O terceiro texto é o conhecido trecho do Dt 26,4-10. «Descreve o que é o rito da oferta das primícias, cuja primeira parte é o relato da história em que se fala do poder do Senhor; a segunda parte é a oração ou formulário da oferta»[2].


2.               CORRENTES DE ESPIRITUALIDADE
2.1.            A Tradição Javista (J)
É uma formação bíblica da época de David ou de Salomão. O texto base é o trecho de Gn 12,1-4 definido por alguns como o “kerigma fundamental do Javismo”, no sentido de que «fala da iniciativa livre e gratuita de Deus que chama Abraão, introduzindo-se na sua vida e mudando-a»[3].
Há também que ter em conta a experiência do Javismo no Gn 2-3 onde vemos como a fé ilumina a existência histórica do homem e se transforma em modo de interpretar a vida. Surgem aí as grandes interrogações do homem cujas respostas são dadas pela fé em Deus libertador; Deus não é autor do mal, este tem origem na liberdade do homem.

2.2.            A Tradição Eloista (E)
Teve origem em época posterior à divisão do Reino de Salomão. Limita-se às tradições nacionais que se podem resumir em dois pontos:
a)                  A consciência viva do pecado que leva Israel a atraiçoar o seu Deus logo depois de firmada a aliança. O relato do episódio do bezerro de ouro (Ex 32) «é como um segundo pecado original porque quebra a fidelidade a Deus renunciado a fé em Deus único, manipulando a alinaça de um Deus que ama o seu povo»[4].
b)                  A sensibilidade moral que leva Israel a retornar ao seu Deus, aceitando o Decálogo (Ex 20,1-21) e reactando o vínculo com Deus. Na Tradição Eloísta, o Deus de Israel revela-se como Deus da vida, o Deus da interioridade e da libertação. A observância da lei deve ser a resposta de Israel ao Deus que foi o primeiro a elegê-lo como seu povo.

2.3.            A Tradição Deuteronomista (D)
Esta marca uma consolidação da corrente espiritual iniciada no tempoda reforma religiosa de Josias. Reúne as tradições mosaicas para actualizá-las e reinterpretar a história do povo desde a morte de Moisés até ao exílio, seguindo o critério fundamental único, a saber: o da fidelidade religiosa. O tema central do Deuteronómio consiste em reformular a aliança e a lei hoje e fazer do êxodo um facto contemporâneo.

2.4.            A Tradição Sacerdotal (P)
A Tradição Sacerdotal diz respeito à redacção final do Pentateuco e é a mais recente embora retome materiais antiguíssimos, provavelmente pertencentes às tradições ligadas ao Templo de Jerusalém.

3.                  A ESPIRITUALIDADE PROFÉTICA
Para esboçar a experiência espiritual bíblica no fenómeno do profetismo, interessa-nos esclarecer que os profetas são, antes de mais nada, homem de Deus. O Senhor não é só objecto da sua reflexão e das suas palavras mas sobretudo oessia viva com quem entram em comunhão. Em nome do Senhor e por ordem dele é que os profetas falm ao povo.
O profeta aceita o isolamento e a solidão, aceita viver a experiência do povo de Deus perseguido, que sofre, que é sujeito à prova. O prova crê na validade da própria missão e aceita com fé a experiência do insucesso. Nunca perde a esperança. É típico, a este respeito, o exemplo do profeta Jeremias (Jr 8,21;14,17; 17,14;12,3;20,7). É homem de fé.
O profeta é homem de olhar penetrante. Ele sabe ler na trama dos acontecimentos qual o plano de Deus; sabe descobrir os sinais dos tempos e interpretar o sentido religioso dos factos. É o caso do profeta Amós. Por outro lado, o profeta é um homem atento à reconstituição da mensagem religiosa na sua pureza original. O maior esforço de muitos profetas é de reconduzir a religião às suas fontes primitivas; querem reconduzir a fé ao seu centro profundo.
Na nova situação de Israel, que de povo nómada passa para uma vida sedentária, surgem inúmeras dificuldades na fidelidade à aliança e muitas tentações  no campo político, social e religioso. Os profetas mantêm firme a esperança de Israel forçando-o a olhar para frente. A denúncia dos profetas não parte da crítica do homem e da sociedade mas da fé. Prevalece sempre a dimensão vertical: «O Deus que libertou Israel do Egipto é um Deus que aceitou a história e se inseriu nela para realizar um plano que é seu e que está além de todas as concretizações do homem»[5]. Somente Deus é absoluto.
4.      A EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL DOS SÁBIOS
A reflexão sapiencial é muito antiga e acompanhou toda a experiência de Israel. Sem a sua colaboração a aventura espiritual de Israel teria sido muito diferente. Apontamos aqui duas características da experiência dos sábios:

4.1.            Intenção de universalidade
A universalidade serve de plataforma comum em torno da qual todos os homens de boa vontade podem unir-se. Os sábios são educadores da fé preparando o homem no aspecto humano ao compromisso da aliança. As virtudes mais indicadas são a força e a coragem, o autodomínio e a liberdade interior, a fidelidade e a prudência.

4.2.            Convivência entre a sabedoria e Deus, a fé e a razão
O sábio de Israel compreende que a sabedoria do homem vem de Deus; que ela é algo que desce de cima para baixo; que é um dom precioso que precisa de ser acolhido, palavra que deve ser escutada em atitude de disponibilidade, de obediência e de silêncio. Entre a fé e a sabedoria não deve existir oposição, mas uma ponte que une a revelação com a experiência.

5.      A EXPERIÊNCIA DO EXÍLIO E DO IMEDIATO PÓS-EXÍLIO
Na lógica da história de Israel parece um absurdo a eventualidade do exílio. Seria a destruição de todo o plano salvífico de Deus iniciado durante  o êxodo com inúmeros prodígios; seriam desmentidas todas as promessas de Deus: a promessa da terra; o juramento de fidelidade a casa de David, a estabilidade do Templo. Mas o exílio aconteceu e suscitou um problema teológico, um problema de fé: é o mesmo Senmhor; o Deus Salvador? Ele ainda se mantém fiel às suas promessas? Israel reconsiderou toda a sua fé, a sua tradição, legislação e história. o que parecia absurdo constituiu deste modo um grande salto para frente, para a própria fé, fazendo com que Israel tomasse consciência da verdadeira face de Deus, sendo obrigado a recuperar a verdadeira ideia de Deus, de povo eleito e da esperança messiânica.



6.      AS ESTRUTURAS DA EXPERIÊNCIA VETEROTESTAMENTÁRIA: SÍNTESE
A experiência espiritual veterotestamentária paradigmatizou-se sob o signo da alinaça entre Deus e o seu povo. Assim, pretendemos apresentar de forma sucinta as linhas mestras desta relação de fé e de caminhada espiritual em seis pontos.

6.1. A fidelidade à história
O princípio básico que sustenta tudo na experiência espiritual do Antigo Testamento é a convicção da presença salvífica da presença de Deus na história. Israel coloca no centro da sua fé uma história de salvação.
A primeira estrutura bíblica no Antigo Testamento é a fidelidade à história. o homem bíblico parte do que é singular e concreto para analizar de seguida os factos em geral, vendo quais são as suas constantes e sabendo que os acontecimentos particulares têm implicações universais. Deus revela-se no momento particular, mas é o Senhor de toda a história. o homem bíblico está implicado no curso da história e não pode fugir ao que a história significa para a sua fé, particularmente no que se relaciona com a providência divina.

6.2. A memória
Inserido na história, o povo de israel anda em busca de uma direcção, de uma segurança e de uma explicação, e encontra tudo isso nas situações concretas da história. israel sabe ler a sua própria história no presente, abrindo-se ao futuro, partindo de alguns feitos de Deus particularmente reveladores. Israel conservou constantemente na memória uma série de acontecimentos aptos para tentar decifrar os caminhos de Deus.
Israel, porém, não se limita a recordar só as proessas e os grandes gestos de Deus, mas com palavras e sinais, transmite aso vindouros a experiência espiritual correspondente. A liturgia, o Templo, o sábado, as festas e as leis são continuamente recordados, interpretados e actualizados no presente com base nos factos do passado.



6.3. A tendência para o futuro messiânico
Persuadido de que a Palavra de Deus é firme, Israel não só procura actualizá-la, mas também purificá-la e projectá-la para o futuro. Não deixando cair nenhuma das promessas, Israel permitiu que tomassem proporções imensas.
O homem bíblico não só acredita numa presença de Deus na história, mas está certo de que a história está sempre aberta e qua ainda não se revelou totalmente o seu sentido. As promessas messiânicas chocam muitas vezes com a dureza do homem: então a realidade histórica, sempre decepcionante, em lugar de afastar Israel da fidelidade para com o seu Deus, estimula-o a purificar o sentido das promessas, apoiá-las em Deus e não no homem. Surge deste modo a esperança de Israel como facto teológico: nasce unicamente da fidelidade de Deus não da confiança no homem nem da avaliação optimista dos acontecimentos históricos.

6.4. A Tradição Sacerdotal (P)
O povo de Israel, de regresso do exílio, vive uma situação inédita. Sem templo e sem liturgia. A Tradição Sacerdotal baseada nas antigas tradições de Israel, responde reelaborando o culto e a liturgia; incutindo nova mensagem de esperança e convidando Israel a uma nova confiança na Palavra de Deus. Ela condensa o seu motivo central nos seguintes passos Gn 1,28; 9,1-7; 17,2-6.16; 28,3-4; Ex 1,7. A mensagem é clara: a vida vem de Deus, da sua bênção. Eis um convite à confiança e uma confirmação de que a aliança não está condicionada pela resposta do homem mas exclusivamente pela palavra de Deus. Esta palavra impeliu Abraão a uma opção radical. Ele abandona tudo confiando na palavra do seu Senhor mesmo que as promessas de Deus tardem em realizar-se. O Deus da salvação é misterioso: os seus caminhos não são os nossos.

6.5. A fidelidade às origens e a abertura ao novo
A esperiência de Israel na sua fidelidade ao passado e na sua projecção para o futuro, é chamada a viver o equilíbrio entre memória e novidade; numa situação de perene mudança através dos acontecimentos e da vida. Para Israel o essencial é a busca da vontade de Deus, sempre livre e imprevisível. «Não fiqueis a lembrar coisas passadas; não vos preocupeis com acontecimentos passados» (Is 43,16-21).
6.6. Assimilação e diálogo
A adesão ao património originário, na experiência de Israel dá origem a uma surpreendente capacidade de assimilação e diálogo. Na experiência baseada num Deus que está presente e age na história Israel encontra também  o mistério da ausência de Deus. Deus oculta-se para que Israel procure encontrá-lo segundo a palavra do salmista.
O crente de Israel é mais testemunha de Deus do que pensador. A busca de Deus é uma constante na experiência de Israel, não como conhecimento especulativo mas relacionado com o homem e dentro da sua vida concreta. Para Israel, Deus está presente na história dos indivíduos, do povo e dos outros povos; Ele dirige a história.
A experiência bíblica cimpreendeu que a existência do homem será resgatada da vaidade e da morte, partindo não das componentes do homem, mas da fidelidade de Deus. Deus e o homem são definitivamente vinculados um ao outro.
Israel sempre se viu exposto à idolatria. Toda a história bíblica é a luta contra a tentação que leva o homem a confundir o criador com as criaturas e é a raiz de todos os pecados contra Deus, é não só abandono de Deus, mas crer e optar por um deus diferente, instrumentalizado, manipulado, ao serviço de Israel que causa degradação.


7.      CONTINUIDADE E DESCONTINUIDADE ESPIRITUAL
A experiência espiritual de Israel como caminho constante que leva à união permanente com Deus, revela-se como um processo não acabado e como uma busca incessante de Deus caracterizada por continuidade e, simultaneamente, pela descontinuidade.
Continuidade porque o homem chega a descobrir que é criado para Deus: só Deus é digno do homem. Portanto, «Deus e a sua vontade é o valor absoluto, o bem total do homem, o único bem que o pode totalmente realizar, cumular o seu coração de infinitas graças»[6]. Por isso, o homem é criado para se realzar amando a Deus e tudo no amor de Deus. Mas para que haja amor, dom de si, entrega, é preciso haver liberdade.
Descontinuidade porque a infidelidade, o mal, da condição humana entrou no mundo. O pecado que deu origem a todos os males é a desobediência cometida por Adão (Gn 1-3). Portanto, o homem afasta-se do plano originário de Deus. A norma e a possibilidade de optar e decidir, é sinal de liberdade e condição do amor. Mas Deus não abandona o homem, procura-o, promete-lhe, apesar do pecado, uma vitória no futuro.

8.      O DEUS DE ISRAEL AGE E REVELA-SE NA HISTÓRIA
A história é uma caminhada colectiva em direcção a um termo. O sentido da caminhada, isto é, a sua direcção e o seu significado, e a consciência reflexa de haver um sentido, é que transforma os puros factos humanos, atómicos, dispersos, em verdadeira história reconhecendo-lhes coerência e inteligibilidade.
Deus age e manifesta-se, reage, revel-ase e através dos próprios acontecimentos, das forças da natureza, da consciência e dos homens que falam em seu nome (profetas) Deus entra em diálogo, em relação com Israel, toma a iniciativa, conduz a história, torna-se interlocutor do próprio homem, aponta-lhe o caminho, dá-lhe normas de realização, respeita-lhe a liberdade, mas fá-lo responsável pelas próprias decisões.
É um Deus vivo, um Deus que fala com os homens vivos, que se compromete com eles, que os faz caminhar. A história surge assim a Israel como «horizonte de humanidade, iniciativa do seu Deus que entra em diálogo com o homem e apela para a resposta da sua liberdade. Deus apela e desafia a liberdade do homem»[7].
Por iniciativa de Deus constitui-se a comunidade (Gn 10) e põe-se a caminho em direcção ao seu termo,a terra prometida que Deus lhe dará como herança. Mas o chamamento de Deus dirige-se sempre à liberdade humana que é responsável, que pode dizer sim ou não. Em resposta a Deus e em colaboração com Ele, pela sua liberdade e responsabilidade, o homem torna-se responsável e construtuor da sua própria história.
Aos olhos de Israel, Deus vai-se revelando, não já apenas como Senhor da história de Israel, mas como um Deus universal, um Deus único, e Senhor de toda a história humana. A história revela-se assim como a história de salvação, iniciada e conduzida por Deus e o próprio Deus através da história de Israel vai revelando os traços do seu Rosto.
Deus revela-se através dos seus feitos históricos. A história torna-se assim não só história de salvação como história de revelação e é isso que dá unidade e inteligibilidade à história deste povo. Deus ao revelar-se assim, através dos seus feitos históricos, «faz Israel tomar consciência de que esta revelação histórica e indirecta, é também necessariamente provisória e progressiva»[8]. Aquilo que para Israel, num dado momento, era considerado revelação definitiva, é superado por novos acontecimentos históricos, com o seu correspondente conteúdo revelador e torna-se revelação provisória.
Por isso, a salvação e a revelação de Deus vai-se abrindo progressivamente, torna-se dinâmica, vai sendo superada e é posta sempre mais além, no futuro. Assim, «a dimensão futuro torna-se a dimensão chave de Israel»[9]. Na sua caminhada histórica, Israel vai esperando do futuro a revelação de Deus e o sentido da própria história; mas compreende ainda que só no futuro absoluto. A história torna-se não só o local da aliança, mas a aliança mesma de Deus com os homens, a estrutura básica da realização e interpretação da história da salvação.

9.      O CONTEÚDO DA REVELAÇÃO
A fé de Israel descobre que existe um único Deus, Senhor de Israel, de todos os povos e de todo o universo. O monoteísmo de Israel mostra que é de Deus que nascem: a libertação do homem porque Deus é único; a unidade da humanidade: porque à unicidade de Deus corresponde a unidade da humanidade, fontal, essencial e final; Adão não é só antepassado de Israel mas de todos os homens; o Deus de Israel «Aquele sem o qual nada existe ou Aquele pelo qual tudo existe»[10].
A personalidade do homem «criado à imagem e semelhança de Deus» (Gn 1,27), torna-se assim reveladora do carácter pessoal do próprio Deus, à imagem de Quem o homem é criado. Isto explicita e concretiza, de forma dinâmica e colectiva, a caracterização de Deus como Senhor da história e da aliança. Deus que gratuitamente escolhe Israel e através dele se quer revelar e salvar todos os homens é paciente, benigno, lento a indignar-se e sempre pronto a perdoar (cf. Ex 3,1-20; Dt 7,6-9) e por isso misericordioso e continuamente fala a Israel através dos profetas. «No devido tempo chamou Abraão, para fazer dele um grande povo (cf. Gn 12,2), preparando assim, através dos tempos, o caminho do Evangelho»[11].
Revelando-se Deus ao homem, de modo particular na história concreta de um povo, Israel, dessa mesma revelação e imagem de Deus se liberta necessariamente uma determinada imagem do homem, pois o «plano de Deus para o homem não é algo lateral ou exterior ao próprio homem mas precisamente aquilo que o determina e define»[12]. A revelação de Deus e a revelação do homem correm paralelas e implicam-se mutuamente. Mas esta imagem será integrada e superada pela imagem do homem do Novo Testamento, pela revelação definitiva e insuperável de Deus e do Homem, realizada em Jesus Cristo.
A revelação, isto é, a comunicação de Deus ao homem de uma informação, de um conhecimento, é efectuada por intermédio de um homem cuja função é receber essa informação que vem de Deus. o profeta é o homem de Deus. no entanto, a revelação não é somente revelação. «É a operação contínua do Deus vivo e criador que prossegue sua obra em Israel, e na humanidade inteira, através de Israel»[13]. A comunicação de uma mensagem, de uma instrução, de uma norma, não é apenas comunicação do conhecimento de Deus, mas também, e por isso mesmo, criação de uma humanidade nova e santa.
Deus não só se manifesta e se faz conhecer ao mundo pela intervenção, pela criação dessa obra original e nova que é Israel, como também faz-se verificar em Israel, aos olhos e para a inteligência dos homens que constituem esse povo. Por isso, a existência e a acção de Deus em Israel são objecto de um conhecimento autêntico, de uma inteligência.
A dupla função da Palavra de Deus é de criar e de ensinar. A criação é continuada pela comunicação de um ensinamento. A Palavra que ensina é criadora pelo próprio facto de ensinar. Enforma, cria, constrói, organiza um povo cujos elementos estão interligados pelos elos orgânicos de uma norma vivificante.

9.1. Características fundamentais da revelação veterotestamentária
Como caminho que nos conduz à percepção da perfeição cristã, a revelação progressiva de Deus através da história e da Palavra no Antigo Testamento apresenta-se como[14]:
*                  Uma atitude global que exige resposta positiva, existencial e integral do homem à revelação de Deus, ao Deus que se revela;
*                  Acolhimento de Deus e da sua Palavra, da sua vontade, da sua lei, obediência, dom de si, entrega amorosa, confiança na fidelidade e amor de Deus, que envolvem opção e risco;
*                  Reconhecimento de Deus como único Deus e Senhor, Transcendente e Absoluto, fonte de vida e de realização;
*                  Projecto de fidelidade à aliança que se expressa nos mandamentos como caminho de realização última e definitiva, individual e colectiva;
*                  Capacidade de conhecer e reconhecer a Deus, de entrar em diálogo com Ele, de O amr (cf. Gn 3, Adão e Eva e Aliança);
*                  Compreende-se que a autêntica fé bíblica, alicerçada na história de Israel, se expressa sobretudo por uma total confiança em Deus, no seu amor criador e libertador, por um lado, e por outro numa atitude de resposta, de disponibilidade incondicional e absoluta à sua vontade, expressão do seu amor e caminho de realização do homem.
*                  Para João L. Antunes, «a fé, na revelação de Deus, implica aceitar que há um Espírito e um Desígnio oculto na história do universo e esse Ser cuja presença velada é revelada pela criação, é digno de ser objecto de culto e é fonte de esperança»[15].
A fé religiosa decorre de uma lealdade e confiança do homem no transcendente. No homem esta relação com a divindade, transcendente e imanente, ocorre mediante a oração, a contemplação, a meditação, o culto comunitário e privado, as intimações místicas, etc., e também, num plano mais imediato, do consolo na vida e na morte, do alívio das angústias do quotidiano e, deste modo, como estratégia de sobrevivência.

9.2. A Aliança
A aliança é a estrutura-síntese de todo o Antigo e Novo Testamentos: profetas, sacrifícios, Lei, Reis, promessas, povo etc., tudo se enquadra e inclui na aliança. A origem e estrutura da aliança entre Deus e Israel é de direito público: recordação dos benefícios recebidos, promessa de ajuda e protecção, caso as clausulas sejam cumpridas, celebração do tratado.
Deus toma a iniciativa de uma aliança com Israel, tendo Abraão e Moisés, como mediadores (Gn 12,1-17; Ex 3,1-20). Israel é o povo que vive da esperança no cumprimento da promessa feita por Deus aos patriarcas (Abraão, Isaac e Jacob) da aliança, do pacto celebrado entre Deus e o seu povo, por Moisés, o mediador. «Aliança e Reino praticamente identificam-se e concentram a esperança de Israel no Ungido, o Messias-Rei que virá no fim dos tempos, precisamente para instaurar a nova aliança e inaugurar o Reino de Deus»[16].

10.  O DEUS DA ALIANÇA E O POVO DE ISRAEL
Desde o dia da manifestação de Deus, a fé de Israel já não é abstracção mas história. Trata-se de um pacto selado por iniciativa de Deus, cuja condição básica é dura mas ao mesmo tempo consoladora exigência: «Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo». Deus não só liberta o seu povo da servidão do Egipto, mas também se compromete com um pacto eterno a libertar o seu povo da escravidão de si próprio. À luz da aliança, o passado adquire pleno sentido e com o presente determinam o futuro que se concretiza na possessão da terra e na contínua bênção de Deus sempre fiel. «Deus que é a origem de tudo que vem à existência, intervém na história e fá-la caminhar. Esse é o Deus da aliança e só Ele é plenamente Deus»[17].

10.1.        A criação
O amor de Deus para connosco é a razão de ser da criação. O povo de Israel experimentou como este Deus Salvador tem nas suas mãos as pessoas, os povos e os acontecimentos. Porque é o criador, Ele é a fonte e a origem de tudo o que existe. Ele é o Senhor da história e do universo.
Na bíblia, a criação é apresentada como o início da história da salvação e das relações de amor de Deus para com o seu povo. De acordo com a teologia bíblica, a criação é um dom de Deus e como tal faz-nos entrar numa lógica de relação, de dom e contra dom, de dar e de receber. «A lógica da criação é uma lógica de permuta de amor e de vida entre Deus e a humanidade e dos homens entre si, em nome de Deus»[18].
A confissão de fé de Israel centra-se no Deus libertador e está ligada à experiencia histórica da saída do Egipto e da instituição da aliança no deserto. É uma experiência de libertação recebida como um dom e que deve ser celebrada de geração em geração, como testemunho de reconhecimento. Só num segundo tempo, o Deus libertador foi invocado como Deus criador. A criação é o primeiro gesto salvífico de Deus. Projectando a sua experiência libertadora nas origens, Israel universalizou a perspectiva da salvação.
A criação deve ser pensada como história e como contínua. Este movimento de génese faz da existência humana um êxodo. É preciso saber partir para o futuro: «Deixa a tua terra (...) e parte» (Gn 12,1). O Antigo Testamento vê na criação, antes de tudo, o ponto de partida do projecto de Deus e da história da salvação, o primeiro grande acontecimento operado por Deus, cuja série prossegue na história de Israel.

10.2.        A aliança
A aliança de Deus com o seu povo é o alicerce fundamental a partir do qual nasce se desenrola toda a história de Israel. É como que o ponto de referência para a caminhada deste povo. A aliança era a garantia duma situação nova (cf. Gn 26,30; 1Res 5,26; Is 54,10), situação esta que se concretizava na integridade, na plenitude das relações comunitárias, por um estado de equilíbrio harmonioso, onde são ponderados com equidade os direitos e necessidades de ambos os contraentes.
Deus liberta o seu povo da escravidão do Egipto e estabelece com ele uma aliança. O povo responde com um novo estilo de vida, com novos valores e novos critérios. São os mandamentos, a lei fundamental de Israel. São critérios de vida que nascem da acção libertadora de Deus. São o decálogo, a síntese da aliança de Deus com o seu povo, para o tornar feliz (cf. Dt 10,13). A aliança exige um compromisso entre as partes e a aceitação das normas estabelecidas entre elas. Neste contexto, Deus é visto como o Deus da aliança, com o acento na reciprocidade e nas exigências mútuas do compromisso estabelecido. Esta aliança comporta um pacto que exige o amor mútuo.
Israel celebrou a revelação dos mandamentos como um acontecimento salvífico de primeira categoria. Existe uma estreita relação entre os mandamentos e a aliança. Com esta celebração cultual, Israel expressava que o acontecimento da revelação sinaítica tinha a mesma actualidade para todos os povos, se renovava em cada geração e era contemporânea a todas (cf. Dt 5,2-4;29,10).
Todavia, «tem que se admitir a possibilidade de uma descontinuidade na continuidade dos momentos temporais, em sentido vulgar ou vazio»[19]. Tal interrupção é provocada, essencialmente, pela experiência de alteridade. Pois, o tempo diacrónico é um tempo que fazendo-se presente no rosto do outro, não permite reduzi-lo ao presente mesmo. Como tal, vive da constante tensão entre presença e ausência. A sua presença dá-se em forma de vestígio que interrompe, constantemente, a presença do tempo à mesmidade, ou seja a continuidade e identidade do tempo vulgar, para se manifestar na diferença essencial e constante.

CONCLUSÃO
A história da salvação, no exclusivo marco do Antigo Testamento, tinha que ser forçosamente uma história truncada porque o essencial dinamismo que a anima sofre um colapso. A linha ascendente desemboca num silêncio, que só a Palavra de Deus feita carne podia encher. A luz que irradia o grande acontecimento do Verbo feito Homem capacita-nos para descobrirmos, retrospectivamente, o grande sentido unitário do Antigo Testamento. A progressiva revelação do plano salvífico encontra-se escalonada em três momentos, que ressaltam com singular significado. É a experiência do Sinai, com todas as suas consequências, a esperança da nova aliança, que proclama Jeremias (cf. Jr 31,31) e o canto do Servo de Deus (cf. Is 52,13-53), cujo sentido messiânico transcende o estreito âmbito de Israel. Só a realidade de Jesus Cristo, Deus e Homem, morto e ressuscitado, possibilita o nosso entendimento das Escrituras. «Só n`Ele e por Ele, a história de Israel é certa e plenamente História de Salvação»[20].




BIBLIOGRAFIA
Concílio Vaticano II, Const. Dogmática Dei Verbum, 3, Ed. AO, Braga 199211.
DUQUE João, Teologia da festa ou festa da teologia, in Theologica, 2, Vol. 31, Braga 1996.
FORMOSINHO Sebastião J., J. O. BRANCO, O Deus que não temos: uma história de grandes intuições e mal- entendidos, Ed. Bizâncio, Lisboa 2008.
PINTO António Vaz, Revelação e fé, Vol. 1, Ed. AO, Braga 1989.
SÁNCHEZ Tomás Parra, Deus, humanidade, messianismo Vol. 4, Ed. Paulinas, S. Paulo 1996.
SILVA João, Ao ritmo da palavra, Ed. AO, Braga 2009.
TRESMONTANT Claude, O problema da revelação, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1972.



[1] Claude TRESMONTANT, O problema da revelação, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1972, p. 177.
[2] Tomás Parra SÁNCHEZ, Deus, humanidade, messianismo Vol. 4, Ed. Paulinas, S. Paulo 1996, p.48.
[3] António Vaz PINTO, Revelação e fé, Vol. 1, Ed. AO, Braga 1989, p. 120.
[4] António Vaz PINTO,  Op. Cit., p. 149.
[5] António Vaz PINTO, Op. cit., p. 170.
[6] António Vaz PINTO, Op. cit., p. 171.
[7] António Vaz PINTO, Op. cit., p. 174.
[8] Ibidem, p. 176.
[9] Ibidem, p. 176.
[10] Ibidem, p. 180.
[11] Concílio Vaticano II, Const. Dogmática Dei Verbum, 3, Ed. AO, Braga 199211.
[12] António Vaz PINTO, Op. etc., p. 183.
[13] Claude TRESMONTANT, O problema da revelação, Ed. Paulinas, São Paulo 1972, p. 121.
[14] Tomás Parra SÁNCHEZ, Deus, humanidade e messianismo, Vol. 4, Ed. Paulinas, São Paulo 1996, p. 49.
[15] Sebastião J. FORMOSINHO, J. O. BRANCO, O Deus que não temos: uma história de grandes intuições e mal-entendidos, Ed. Bizâncio, Lisboa 2008, pp. 28-29.
[16] António Vaz PINTO, Revelação e fé, Vol. 1, Ed. AO, Braga 1989, p. 200.
[17] João SILVA, Ao ritmo da palavra, Ed. AO, Braga 2009, p. 10.
[18] João SILVA, op. cit., p. 29.
[19] João DUQUE, Teologia da festa ou festa da teologia, in Theologica, 2, Vol. 31, Braga 1996.
[20] Ibidem, p. 14.

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