terça-feira, 7 de junho de 2011

OS SACRAMENTOS COMO SINAIS À LUZ DA REALIDADE BANTU II

INTRODUÇÃO
Nem sempre é fácil falar do universo bantu, a sua infinda realidade caracterizada por uma evolução em velocidade incalculável. No presente trabalho tencionamos falar sobre os sacramentos como sinais à luz da realidade bantu. Na vida humana, o homem precisa de sinais e de símbolos para comunicar-se com os outros, pela linguagem, por gestos, por acções. Vale o mesmo para sua relação com Deus. «Os sacramentos da Igreja não abolem, antes purificam e integram toda a riqueza dos sinais e dos símbolos do cosmos e da vida social. Além disso, realizam os tipos e as figuras da antiga aliança, significam e realizam a salvação operada por Cristo, e prefiguram e antecipam a glória do céu»[1]. Para o efeito propomo-nos obedecer o seguinte esquema laboral: a realidade bantu; Cristo origem dos sacramentos; o signo sacramental bantu; Apreciação crítica; conclusão e Bibliografia.

1.         A REALIDADE BANTU: UM OLHAR DE CONJUNTO
Os bantu encontram na maioria da realidade material verdades espirituais. Ou antes «são excelentes a perceberem as relações que existem entre o mundo espiritual e o mundo sensível»[2]. A par deste dom de comparação notável, os discursos dos bantu revelam muitas vezes outro carácter curioso: uma tendência a apresentar as ideias por rodeio.
Como se disse antes, a realidade bantu é um universo multifacetado cuja expressividade se manifesta por meio de sinais, símbolos e gestos simbólicos. Aliás, «só há comunicação entre as pessoas, se sinais, símbolos e gestos simbólicos actuam como ponte»[3]. Santo Agostinho reflectindo sobre “palavra e voz” escreve: «se penso o que dizer, a palavra está no meu coração. Depois o som da voz leva-lhe o conteúdo da palavra»[4]. O sinal, portanto, é essa junção de voz e palavra, significante e significado.
O símbolo é também um sinal cujo significante é transparente a outro significado que não seu primeiro significado. O símbolo, por natureza, exige recolhimento. Os símbolos são, portanto, próprios do ser humano como ser da transcendência. Isto é, «para o símbolo ser símbolo é preciso que se forme em seu torno uma cristalização afectiva»[5]. Quando a realidade que remete à outra é uma atitude humana, um gesto, fala-se em gesto simbólico. O gesto simbólico é o veículo explicitador da espiritualidade da praxis histórica. Deste modo, «não há praxis sem gesto simbólico, nem há autêntico e genuíno gesto simbólico sem praxis»[6]. De facto, o gesto simbólico é expressão de uma experiência e de uma esperança.

2.      CRISTO, ORIGEM DOS SACRAMENTOS
A instituição dos sacramentos é uma acção permanente do Senhor, na Igreja, por seu Espírito. Como proto-sacramento, Jesus é origem dos sacramentos. Jesus é o sacramento do Pai, porque por Ele, imagem e Palavra do Pai, o Deus invisível se torna visível entre os homens. A pessoa de Jesus fundamenta e explica os sinais, da mesma forma que estes explicitam quem é Jesus. A palavra explicita a espiritualidade da praxis celebrada no sacramento. É por isso que Santo Agostinho dirá: «tira a palavra: que é a água, senão água? Acrescenta-lhe a palavra ao elemento, torna-se sacramento, também ele como palavra visível»[7].

3.               O SIGNO SACRAMENTAL NOS BANTU
Falando do projecto de uma teologia dos sacramentos é importante recordarmos sempre o simbolismo africano que, afinal, lança as suas raízes no conceito de união vital que, por sua vez, se articula com a lei da participação. Pois «percebe-se que o meio principal, e muitas vezes mesmo único, de todos os membros de uma comunidade entrarem em contacto uns com os outros e de estreitarem a sua união, é o símbolo»[8]. O símbolo é apresentado como «sinal de reconhecimento formado por duas metades de um objecto partido que se volta a juntar»[9]. No sentido real, o símbolo implica uma relação analógica com o objecto representado. Assim, no plano do sinal concreto, há a evocação de alguma coisa ausente ou impossível de perceber.
Para Mulago, os efeitos do conceito de símbolo são sobretudo três: algo de sensível, o papel hierofânico, isto é, o contacto com uma potência invisível, e, finalmente, o papel unificador e concretizador[10]. Para os bantu, o primeiro papel do simbolismo, papel hierofânico, é o de estabelecer o contacto com o canal e a fonte da vida. Decerto, aquilo a que afinal se aspira é vir a ser um com a fonte da vida, unidade a afirmar, a manter e a tornar perene.
3.1. O Baptismo
A iniciação à vida adulta, realizada em diversas circunstâncias da vida dos bantu, torna o iniciado membro de uma nova família à semelhança da iniciação cristã. A incorporação como membro faz-se pelo «pronunciar de certas fórmulas e a imitação de certos factos e gestos do génio»[11]. O momento mais importante desta iniciação é aquele em que o neófito é possuído pelo espírito do génio. Esta união é de tal modo profunda que se pode falar, também, do ser ôntico no iniciado. Importa salientar que assim como o baptismo cristão imprime carácter, a iniciação à vida adulta realiza-se uma vez por todas. Contudo, renova-se cada vez mais que se toma parte a um evento idêntico à semelhança da renovação dos votos baptismais.

3.2. A Penitência e a Unção dos enfermos
Os ritos tradicionais de reconciliação e de purificação bantu ajudam-nos a compreender melhor que a falta de um cristão é um assunto que diz respeito à Igreja, que põe em jogo a vida espiritual de todo um grupo. A arte do médico consiste, através dos ritos de reconciliação, em alcançar a paz e serenidade nos corações, como primeira condição de qualquer cura. «A reconciliação supõe uma recomposição, um conserto de amor, da comunhão e uma reintegração total sem nenhum ressentimento para com o culpável, da parte da comunidade»[12]. E, como toda a comunidade sofre o pecado de um dos seus membros, toda a comunidade é parte interessada na reparação do agravo. Além dos ritos de purificação ou de reconciliação, Mulago sem levar a reflexão mais longe, indicou muito brevemente que a Penitência, no contexto bantu, poderia também ser representada como um remédio capaz de nos dar a vida, no caso de a havermos perdido[13].

3.3 A Ordem/ o Sacerdócio
Para falar da ordem, Mulago retoma a sua concepção hierárquica piramidal. O seu ponto de partida é que, entre os bantu, «o facto de haver dado a vida ou um meio vital a alguém torna o dador vitalmente superior na relação com o beneficiário»[14]. Nesta lógica, aquele que fica mais próximo da fonte vital, numa mesma linha, é que há-de gozar de proeminência social. Deste modo, o padre desempenha um papel de pai de família. É ele que comunica à família paroquial os meios vitais sobrenaturais e liga os membros ao chefe da diocese, o Bispo e, por ele, ao Papa e Àquele de quem o Soberano Pontífice é representante, Cristo[15].

3.4. A Eucaristia
A realidade eucarística pode ser expressa pelos bantu a partir do simbolismo da refeição, porque, à semelhança da comunhão “no único pão descido do céu”, a participação na mesma refeição transmite as influências vitais que unem todos os comensais entre si. No que tange aos efeitos da comunhão eucarística, nota-se que o sangue de alguns animais contém o princípio vital do homem. É assim que o sangue eucarístico contém Cristo, verdadeira, real e substancialmente. Bebendo o sangue de Cristo e comungando o seu corpo, Cristo e o fiel que comunga tornam-se um. Quando aquele que comungou se torna infiel a essa aliança constituída pelo pacto de sangue, incorre, como na tradição africana, em castigos mesmo automáticos. Todavia, «pela participação no sangue de Cristo, tornamo-nos todos parentes uns dos outros, irmãos do mesmo Pai uns dos outros»[16].

3.5 O Matrimónio
O que se pode pôr em relevo neste tema é o problema do simbolismo, no casamento africano. Este simbolismo sublinha as características do casamento africano. Estas características que são comuns são em número de sete a saber: o carácter comunitário e social; um processo dinâmico; prevalência do aspecto pai-mãe sobre o aspecto esposo-esposa; o carácter sagrado e religioso; a indissolubilidade; a unidade e o penhor da aliança ou dote em certas circunstâncias.

4.                  APRECIAÇÃO CRÍTICA
Na religião tradicional bantu existe um culto explícito no qual as pessoas têm consciência da sua relação com o transcendente. A matéria empregue para o sacrifício é diversa. «Em todo mundo negro-africano, o verbo (palavra) é considerado um fenómeno essencial. Ela excita ou acalma as almas»[17]. A palavra é de origem divina. «A palavra, no culto, completa a obra altamente religiosa como mágica, chama a divindade escolhida e instala-se no seu altar, de modo que o culto seja daí em diante prestado nesse local»[18]. Nos sacramentos desvela-se o carácter encarnacional da graça ou a auto-comunicação de Deus para a nossa santificação e salvação. «A sacramentalidade é a forma que Deus toma ao vir a nós como graça, e na qual podemos encontrá-lo»[19]. Destarte, nos sacramentos, é a nossa redenção que está presente. Eis porque Karl RAHNER ensina que «a eficácia do sacramento corresponde àquela do sinal sacramental»[20].
A teologia sacramental toma a sério o mundo em que vivemos e este é percebido como carregado de nexo simbólico-sacramental, como horizonte de abertura e de encontro[21]. Como todo o signo, também o sacramento está ligado e existe totalmente em função do signo. O signo sacramental converte-se em símbolo, enquanto significa o que realiza e realiza o que significa; significa e realiza, às vezes, a participação nos mistérios da carne de Cristo.

CONCLUSÃO
Como se sabe, a realidade bantu é um sistema de símbolos. Portanto, é “a gramática de imagens e conceitos que ajudam o crente a focalizar e articular a experiência”[22]. As culturas, por seu turno são sistemas de símbolos. Isto significa que o simbolismo é a base da educação cultural, e de facto, de toda a comunicação humana. O simbolismo é uma espécie de sinal, e o sinal é algo que aponta além da própria realidade visível. Segundo Shorter há três tipos de sinais: os naturais, os convencionais e os símbolos. Ora, a vida “divina” também precisa de sinais. Pois, Deus quis que a sua salvação pudesse ser vista, ouvida, tocada, sentida, conhecida por nós, que somos humanos. Tudo o que Jesus fez por nós, divinamente, foi revestido de sinais humanos para que nós pudéssemos perceber e compreender a salvação. Neste sentido, «os sacramentos cristãos são símbolos que nos capacitam para participar efectivamente nos mistérios de Jesus Cristo»[23]. A comunidade bantu é o lugar privilegiado da comunhão fraterna. «O coração da comunhão negro-africana, partindo da concepção bantu, é a ligação de sangue»[24]. Os ritos visíveis sob os quais os sacramentos são celebrados significam e realizam as graças próprias de cada sacramento.

BIBLIOGRAFIA
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[1] Catecismo da Igreja Católica, 1152, Ed. Paulistas, Coimbra 1993.
[2] Henri A. JUNOD, Usos e costumes dos bantu, Tomo II, Arquivo histórico de Moçambique, Maputo 1996, p. 153.
[3] Francisco TABORDA, Sacramentos: praxis e festa, Tomo V, Ed. Vozes, Petrópolis 19902, p. 61.
[4] Aurélio AGOSTINHO, Sermo 293,3, em PL 38,1328-29.
[5] Claude LEVI-SATRAUSS, Antropologia estrutural, Ed. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro 1962, p. 234.
[6] Ibidem, p. 73.
[7] F. TABORDA, Op. cit., p. 134.
[8] Vicente MULAGO, Uma visão africana do cristianismo, Paris 1965, p. 135.
[9] A. LALANDE, Vocabulário técnico e crítico da filosofia, citado por Mulago p. 137.
[10] Cf. Vicente MULAGO, A religião tradicional dos bantu e sua visão do mundo, Kinshasa 19802, p. 156.
[11] Bénézet BUJO, Juvénal I. MUYA, Teologia Africana no século XXI, Vol. I, Ed. Paulinas, São Paulo 2008, p. 17.
[12] Lázaro Messias de CARVALHO, Para uma Teologia Africana, Ed. Prefácio, Lisboa 2008, p. 123.
[13] Cf. Vicente MULAGO, Op. cit., 1965, p. 114.
[14] Vicente MULAGO, Simbolismo nas religiões tradicionais africanas e sacramentalismo, in Revista do Clero africano 27, 1972, p.115.
[15] Cf. Bénézet BUJO, Op. cit., p. 20.
[16] Ibidem, p. 23.
[17] Lázaro Messias de CARVALHO, Op.cit., p. 122.
[18] I. LALAYE, As Religiões de África Negra, Ed. Presença, Lisboa 1999, p. 656.
[19] Lázaro Messias de CARVALHO, Doença e cura em África, Roma Editora, Lisboa 2009, p. 223.
[20] Karl RAHNER, Igreja e sacramentos, Paris 1970, p. 31.
[21] Cf. M. SCHMAUS, A fé da Igreja. Fundamentos, Vol. I, Ed. Vozes, Petrópolis 19822, p. 23.
[22] Aylward SHORTER, Cultura Africana: uma sinopse, Ed. Paulinas, Kenya 1998, p. 40.
[23] Ibidem,  p. 54.

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